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Walter Benjamin, o marxista da nostalgia

Do A Terra É Redonda, 21 de novembro 2025
Por NICOLÁS GONÇALVES*



Imagem: Jacqueline Martinez

A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados

1.
Num presente em que o “vintage” e o “retrô” se tornaram mercadorias corriqueiras, a nostalgia parece ter sido comercialmente domesticada. Um desavisado que acordasse de um coma iniciado nos anos 2000 talvez olhasse ao redor e dissesse: “Os anos 80 ligaram, querem a estética de volta!”. Tudo que pode ser envelopado e vestido em massa agora carrega, como um selo de autenticidade fabricada, aquele rótulo que não sussurra, mas grita: “Compre aqui a sua saudade!”.

Não há, possivelmente, melhor emblema desse processo do que a série, sucesso global, Stranger Things. Ela não evoca os anos 1980, mas fabrica um simulacro deles, uma colagem de referências a filmes, brinquedos e códigos estéticos da época, esvaziada de seu potencial crítico e histórico. Oferece ao espectador a sensação de “voltar no tempo” sem os perigos e as arestas do tempo real – uma saudade em frasco, segura para consumo.

Até a guerra fria, momento histórico trabalhado na série, parece mais um pastiche da batalha entre Rocky Balboa e o russo Drago. A ameaça real é representada por monstros recém-saídos de uma grande sessão da tarde, e não pelas contradições sociais reais da era Reagan-Thatcher e por tudo que o muro representava. Transformou-se, o passado, veja só, num suspiro inofensivo, um arremedo de afetos ausentes que, longe de subverter, celebram e reforçam.

Nesse processo, os consumidores da nostalgia-mercadoria não são necessariamente agentes reacionários; são, antes, atores sociais cujo desejo por um tempo “pretensamente melhor” – mais autêntico, mais simples – é habilmente canalizado e esvaziado pelo marketing. A ordem vigente vende a imagem do passado para anestesiar o potencial crítico que o verdadeiro contato com ele poderia gerar.

Como, então, sustentar a hipótese de que Walter Benjamin, um dos pensadores marxistas mais originais do século XX, seja precisamente o teórico que não apenas redime a nostalgia, mas a ergue à condição de potência revolucionária? A pergunta soa como um contrassenso. Afinal, a tradição marxista ortodoxa consagrou-se como um pensamento voltado para o futuro, e a nostalgia é comumente vista com desdém nesse quadro – um vício reacionário, o suspiro pelo mundo orgânico pré-capitalista.

O aristocrata decadente é o maior arquétipo desse sentimento. O risco de confundir a nostalgia benjaminiana com esta melancolia conservadora é real. Essa orientação prospectiva não é gratuita; ela é herdeira direta do imaginário do progresso evolucionista que marcou os séculos XVIII e XIX, segundo o qual a história humana segue uma linha contínua e ascendente de desenvolvimento – da barbárie à civilização, do feudalismo ao capitalismo e, finalmente, ao socialismo. A distinção, porém, é nítida e reside no fim a que o sentimento serve. Em Benjamin, a nostalgia não é um refúgio melancólico no passado, mas uma arma arqueológica para explodir a continuidade do presente.

2.
Em Infância em Berlim por volta dos 1900, Walter Benjamin não evoca o passado como um idílio, mas como um território de experiências sensíveis ameaçadas pela modernidade. A despensa de sua casa de infância é descrita com uma intensidade quase erótica, em que o tato e o paladar são formas de conhecimento do mundo.

Essa memória íntima do sabor e da textura não é um regresso ingênuo, mas a recuperação de uma Erfahrung autêntica — a experiência integrada — que o capitalismo industrial e a vida urbana acelerada já estavam dissolvendo. A nostalgia, aqui, é o método de escavação dessa camada subterrânea da existência, em que a felicidade não realizada do passado se conserva como um potencial revolucionário.

A primeira e mais crucial guinada benjaminiana é a sua crítica feroz ao mito do progresso. Enquanto boa parte do marxismo de sua época abraçava o desenvolvimento técnico-industrial como base material para o socialismo, Benjamin via o “progresso” como a própria catástrofe.

Sua imagem mais célebre, a do “Anjo da História” das Teses sobre o conceito de história, é a de uma testemunha horrorizada: ele vê uma única catástrofe que acumula ruína sobre ruína e a empilha aos seus pés. A tempestade que o impele irresistivelmente para o futuro, enquanto ele olha para trás, aterrado, é o que chamamos de progresso. É aqui que a nostalgia benjaminiana nasce – não como um desejo ingênuo de “voltar no tempo”, mas como um luto crítico por tudo o que foi esmagado, silenciado e abandonado pela marcha triunfal e violenta dos vencedores.

O passado, assim, deixa de ser uma etapa superada e linearmente conectada ao presente, e se transforma em um campo de batalha, repleto de futuros abortados e promessas de felicidade não redimidas. A saudade, nesse contexto, é o sintoma agudo de uma falha histórica, um indicador de que algo de valioso foi roubado e que seu resgate é uma questão de justiça, não de mero escapismo.

A figura do colecionador, central na nostalgia benjaminiana, aparece de forma vívida na descrição de seus tesouros infantis: o álbum de selos, os postais, as mariposas capturadas. Walter Benjamin aponta que cada uma das pedras, das flores, das mariposas que encontrava geravam uma coleção única. Essa prática, no entanto, não é acumulação fetichista, mas um gesto de resistência contra o fluxo do tempo homogêneo e vazio.

Ao reorganizar os fragmentos do passado em uma constelação pessoal, a criança — como o revolucionário — interrompe a lógica da obsolescência e resgata do esquecimento as coisas que o progresso descartou. A coleção é um ato nostálgico e alegórico que desvia os objetos de seu valor de troca e lhes confere uma nova historicidade.

3.
É crucial, porém, não confundir a figura benjaminiana do colecionador com o consumidor da nostalgia-mercadoria. Tomemos o exemplo do vinil. A indústria cultural, astuta, relança discos em edições especiais, vendendo não apenas música, mas a imagem pasteurizada de uma “experiência autêntica”. A dimensão desse fenômeno é palpável: em 2024, a venda mundial de vinis representou 76,4 % da compra de mídias físicas para ouvir música, superando pela segunda vez consecutiva as vendas de CDs.

Este dado escancara a transformação da saudade em um nicho de mercado lucrativo e massificado. Este vinil novo, embalado como um artefato de museu, é a própria antítese do objeto de desejo do colecionador benjaminiano. Este não busca o produto que simula o passado; ele é um arqueólogo das ruínas do século XX. Seu território é a feira de pulgas, o sebo, o mercado de usados. Seu tesouro é um disco arranhado, de capa manchada, que traz o rastro de uma escuta anterior. Ele escava fragmentos de um mundo perdido. É no LP que carrega os chiados de décadas de existência, que ele encontra a “imagem dialética” capaz de iluminar as falhas do presente.

Para operar essa nostalgia militante, Walter Benjamin forja um arsenal conceitual inovador. O mais importante deles é o Tigersprung, o “salto de tigre no passado”. Este não é um movimento contemplativo, mas um ato de violência seletiva. O revolucionário, movido por um perigoso afeto nostálgico, salta para uma época específica, arrancando-a do “continuum da história” – a narrativa linear e pacificadora escrita pelos opressores.

Esse salto não visa restaurar a época em si, mas capturar uma “imagem dialética” (Dialektisches Bild). Tal imagem surge no instante de perigo, quando um determinado “Agora” (Jetztzeit) reconhece, num lampejo, uma constelação com um passado determinado. É o flash em que o presente, em sua crise, se reconhece no sofrimento e nas lutas de um passado específico, formando uma configuração carregada de potencial explosivo. A nostalgia, portanto, é a faculdade de perceber essas faíscas que cortam a linha do tempo.

Berlim, na prosa de Benjamin, não é um cenário estático, mas um organismo em transformação, cujas ruínas prenunciam o colapso. O Tiergarten, a Coluna Triunfal, o telefone no corredor escuro — cada espaço condensa camadas de tempo. Ao recordar as ruas e esquinas e a tia Lehmann em seu mirador, Walter Benjamin não celebra um mundo estável, mas revela sua fragilidade.

Essas imagens são “ fotografias instantâneas tomadas tiradas do alto, de um reino fantástico”, como diz o epílogo, e carregam em si o germe de sua própria destruição. A nostalgia, nesse contexto, é a percepção aguda de que cada lugar guarda um futuro que não se cumpriu — um futuro que a catástrofe do nazismo, dentre tantas outras que marcaram os últimos cem anos, viria a cancelar.

4.
O flâneur que vagueia pelas galerias de Paris do século XIX, figura central em O Livro das Passagens, é a personificação ambulante dessa nostalgia ativa. Ele não é um turista saudosista, mas um arqueólogo dos detritos do capitalismo. Sua deriva melancólica entre mercadorias obsoletas, modas passadas e arquiteturas em decomposição é, na verdade, um trabalho de coleta. Ele recolhe os sonhos e as ilusões da sociedade mercantil, os fósseis que revelam sua verdadeira natureza.

Da mesma forma, a perda da “aura” – a singularidade e a experiência autêntica (Erfahrung) erodidas pela reprodução técnica e pelo ritmo do choque (Choc) na metrópole moderna – gera uma saudade. Walter Benjamin, contudo, não propõe um retorno reacionário à aura. Em vez disso, ele usa a nostalgia dessa perda para diagnosticar a alienação e, a partir desse diagnóstico, forjar novas formas de percepção e resistência. A nostalgia torna-se, assim, um instrumento de análise crítica.

É possível identificar as figuras concretas que povoam esse universo da nostalgia revolucionária. O já mencionado colecionador é uma delas. Movido por uma paixão aparentemente irracional por objetos fora de moda, descartados pelo ciclo da mercadoria, o colecionador é um nostálgico radical. Ao reorganizar os objetos em uma nova constelação – sua coleção –, salvando-as da lógica do valor de troca e lhes confere um novo significado, uma nova história.

Ele interrompe a narrativa da obsolescência programada e demonstra que o passado pode ser reativado de maneiras imprevistas. Outra figura crucial é o contador de histórias, de quem Benjamin, em seu ensaio O Narrador, lamenta o desaparecimento. O contador de histórias é a memória viva da comunidade, aquele que tece a experiência coletiva e a transmite.

A nostalgia por sua figura não é um desejo ingênuo pelo mundo rural, mas a percepção aguda de que o capitalismo, ao substituí-lo pelo romance solitário e pela informação efêmera, empobreceu drasticamente a nossa capacidade de compartilhar e dar sentido à experiência vivida. Recuperar o seu espírito é um ato de resistência cultural.

É inevitável, porém, enfrentar a objeção central: como distinguir essa nostalgia benjaminiana da melancolia reacionária? O risco de se cair em um romantismo conservador é real. A distinção, porém, é nítida. O reacionário é nostálgico de uma ordem passada, real ou imaginada, e seu desejo é restaurá-la. Sua nostalgia é retrospectiva e, por isso, paralisante. Já a nostalgia benjaminiana é prospectiva. Ela não quer voltar ao passado, mas ativar no passado a centelha da esperança.

Ela vasculha as ruínas não para morar nelas, mas para encontrar nos escombros os fragmentos de um futuro diferente, as potencialidades que foram truncadas. É uma nostalgia que olha para trás para melhor saltar para a frente. O que poderia ser lido como melancolia em Benjamin é, na verdade, uma fúria contida, a frieza do alegorista do Trauerspiel alemão, que encara as ruínas do mundo como material bruto para uma nova construção.

5.
Diferente do reacionário que deseja um passado intacto, o materialista benjaminiano trabalha com esses próprios fragmentos e distorções, transformando a nostalgia da perda total em combustível para uma recuperação parcial e militante.

Se o colecionador e o contador de histórias são as figuras que ativamente resgatam o passado, Walter Benjamin também nos alerta para os obstáculos desse resgate por meio da figura alegórica do homenzinho corcunda. Inspirado no poema “Abendlied” de Matthias Claudius, o homenzinho corcunda surge no folclore alemão como um duende sabotador que, em versos como “quando vou à adega, um anão corcunda quebra minha jarra”, personifica o azar cotidiano.

Walter Benjamin resgata essa figura, associando-a aos espíritos travessos dos contos dos Irmãos Grimm, para transformá-la em uma presença alegórica que historiciza a sensação de culpa, fracasso e a ação corrosiva do tempo sobre a memória. Esse duende que tudo fragmenta e reduz é a consciência de que o passado não pode ser recuperado intacto; está sempre deformado pelo esquecimento e pela violência histórica.

No epílogo, lê-se que essa figura “se perdeu para sempre”. Ela representa a impossibilidade de uma nostalgia ingênua, mas também a necessidade de lidar criticamente com essas lacunas. O revolucionário deve aprender a dialogar com esses fantasmas — não para exorcizá-los, mas para extrair deles a energia de um luto que não se resigna.

Num presente em que o capitalismo é mestre em cooptar e vender “saudades” pasteurizadas, a tarefa do crítico torna-se a de praticar uma nostalgia mais astuta e mais militante. É preciso, portanto, distinguir não para condenar o desejo nostálgico do indivíduo — compreensível num mundo de aceleração e alienação —, mas para atacar a lógica que o transforma em mercadoria inócua. Como lidar com o fato de que a nostalgia-mercadoria oferece um refúgio e um passado pré-digerido?

Walter Benjamin nos legou a chave para esse trabalho. Ele intuiu que a nostalgia, quando submetida à disciplina dialética, deixa de ser um sentimento paralisante e se transforma em um método de insurgência histórica. Ela é a recusa em aceitar que o caminho trilhado pelo progresso capitalista era o único possível. É a insistência em escavar o passado em busca das sementes de futuros que ainda não floresceram.

Nesse sentido, Benjamin é, de fato, o marxista dos nostálgicos: aquele que compreendeu que, para desbloquear o futuro, é preciso primeiro aprender a ler, com fúria e precisão, os sinais de fumaça que nos chegam do passado. O verdadeiro revolucionário, em sua visão, é também aquele que, ao olhar uma fotografia desbotada do século XIX, não vê um mundo morto, mas a centelha de um porvir que ainda está por ser conquistado. É preciso, portanto, olhar para trás com os olhos do tigre, e então saltar.

*Nicolás Gonçalves é doutorando em sociologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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