Por GABRIEL LUIZ CAMPOS DALPIAZ & KAUE BARBOSA OLIVEIRA LOPES*
O polímata Álvaro Vieira Pinto uniu a dialética platônico-hegeliana e o marxismo para conceber o subdesenvolvimento como um problema a ser superado pela industrialização e a razão científica
1.
O filósofo Álvaro Vieira Pinto (1909-1987), conhecido como o “mestre brasileiro” – alcunha recebida de Paulo Freire e Darcy Ribeiro – era um polímata, graduou-se em medicina e posteriormente em matemática e física para se aprofundar nos estudos sobre os dilemas do raio-X. No ano de 1950, recebeu o título de doutor da cátedra de história da filosofia da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), defendendo a tese em 1949 intitulada Ensaio sobre a dinâmica na cosmologia de Platão.
Foi um dos pensadores que integrou o célebre corpo de intelectuais brasileiros que pensavam o subdesenvolvimento como problema nacional, compondo o Instituto de Educação Superior Brasileira (ISEB) nas décadas de 1950 e 1960, em conjunto com nomes como Nelson Werneck Sodré, Guerreiro Ramos, Hélio Jaguaribe, Ignácio Rangel, Roland Corbisier etc.
Pode-se dizer que o ISEB foi a materialização de um “Iluminismo brasileiro”. Esse movimento, que tinha como princípio a industrialização nacional, surgiu de forma embrionária no século XIX, nos textos do filósofo da natureza José Bonifácio de Andrada e Silva, que pensou em projetos nacionais. Pautas como a independência do Brasil, a reforma agrária e a superação do trabalho escravizado por meio da inserção da manufatura – elevando as forças produtivas e transformando significativamente as relações sociais da época – já estavam presentes em seu pensamento. Entretanto, seu projeto nacional fracassou em grande medida, embora suas ideias tenham permanecido vivas.
Sendo a história evolutiva, mas não linear, o espírito do tempo (Zeitgeist) manifestou-se no retorno dos ideais de José Bonifácio entre os nacionalistas do ISEB. O filósofo Álvaro Vieira Pinto, ao assumir uma posição em defesa da industrialização nacional, desenvolveu diversas obras, como Consciência e Realidade Nacional, Ciência e Existência, Ideologia e Desenvolvimento Nacional e O Conceito de Tecnologia, entre outras.
2.
O filósofo brasileiro teve grande influência filosófica da tradição aristotélica e tomista em seus anos escolares, devido à educação religiosa que o moldou e o influenciou nos seus primeiros anos de estudos. Porém, sua base epistemológica consolidou-se posteriormente com influência platônica e, a partir da década de 1950, com as filosofias hegeliana e marxista.
Em sua Tese de cátedra, menciona Platão como desenvolvedor da obra Timeu, na qual é relatado o mito do demiurgo. Para Vieira Pinto, o mito em Platão apresenta, a partir do discurso (logos) poético, a deliberação sobre o real por verossimilhança. Uma tradição de utilizar mitos, fragmentos e o discurso poético já herdado dos pré-socráticos (physikós). E, se o cosmos pode ser racionalizado, logo as demais questões, como ética e política, também pode sê-lo. No Timeu o próprio mito do demiurgo é uma ferramenta para superar os mitos dogmáticos.
Revela-se que o artesão Demiurgo não é o criador, mas o organizador do cosmos, representando a racionalidade e a inteligibilidade ordenada da realidade em seus fundamentos mais singulares. Então, se se pode discorrer sobre a realidade cosmológica de maneira racional, também se pode fazê-lo sobre o campo ético e político. Visto que, se a realidade é passível de ser conhecida por meio da cognição humana, então os mitos dogmáticos que sustentam os poderes pré-estabelecidos, podem ser superados pela razão.
Pois, se na Antiguidade o discurso poético, com suas analogias e mitos, era um dos principais veículos para a expressão da razão, como demonstrado por Platão, essa força de pensar realidades não se perdeu no tempo. No contexto brasileiro, o discurso poético que irrompeu com a Semana de Arte Moderna de 1922, apesar de suas contradições, foi a forma pela qual uma geração buscou forjar uma identidade nacional para o Brasil.
Deve-se reconhecer também que o discurso poético está muito próximo da elaboração de Vieira Pinto, nas décadas de 1950 e 1960, sobre as causas do subdesenvolvimento nacional. O filósofo brasileiro reconhece o conceito de projetar para realizar a nação, o fator imaginativo como início do caminho da consciência, da doxa à episteme.
Projetar é pensar sobre uma realidade, buscar suas regularidades e, a partir dela, utilizar formas de superar os impasses. Projeta-se sobre a nação – esta que possui suas propriedades no campo empírico, por meio do devir –, mas que se transforma pelas elaborações e projetos em busca de sua consumação. Uma relação platônico-hegeliana, que apresenta as possibilidades do ser em vir-a-ser por meio da dialética, na qual as antinomias que surgem devem ser superadas.
A filosofia platônica e hegeliana foi a base na busca rigorosa dos conceitos concretos e suas manifestações; o compromisso com a verdade é explícito. Logo, a nação, sendo um projeto, um vir-a-ser, está sempre em realização, nunca um plenamente acabado. Assim, ela se atualiza constantemente de acordo com a sua realidade vigente. Ela só se tornará um fato consumado quando se esgotar e, assim, deixará de ser.
3.
Mas, até que isso ocorra – ou não –, a nação no século XX é um meio para os países subdesenvolvidos buscarem consolidarem suas independências no campo econômico. Vieira Pinto reconhecia que há a contradição entre capitalistas e trabalhadores, mas, nos países subdesenvolvidos, ela é obscurecida por meio de uma contradição maior: entre império e nação. Aqui, países que buscam a sua emancipação, mesmo pela via do capital, sofrem consequências.
O império, representado pelos EUA com a Operação Condor, freou grande parte do processo de industrialização no século XX nos países conhecidos atualmente como o Sul Global. E aqui há um ponto interessante no texto. Para os filósofos do idealismo alemão, conforme Vieira Pinto, todo processo de industrialização é a impressão de racionalidade sobre o real. É o processo científico dando não só forma, mas conteúdo para a realidade.
Pensar e real formam uma síntese da totalidade na busca da inteligibilidade das categorias e dos conceitos. Vieira Pinto reconhecia um ordenamento nas mediações sobre o homem e o mundo, e ia além, ao afirmar que, na busca da ontologia da existência do homem, ele transforma o meio e a si.
No que se centra a transformação da realidade, Vieira Pinto desenvolveu o conceito de amanualidade. O ser humano, a partir do manuseio dos objetos que o cercam, mediado pela razão, modifica e se objetiva na realidade. Um processo dialético que ocorre por meio de uma categoria hegeliana central: o trabalho.
Para que o homem se objetive no mundo material por meio do trabalho de maneira totalizante, existem etapas da consciência. Primeiro, há a consciência-em-si, que se vê isolada do mundo, mas, por meio da interação com outras consciências e com a natureza, reconhece sua relação com o mundo. Aqui há, ainda, uma consciência ingênua (consciência-de-si), uma consciência que é apenas parcial.
Como exemplo: o trabalhador e o capitalista. O trabalhador se conhece de maneira ainda parcial por dar forma ao mundo, porém não sabe, em essência, a base elementar da estrutura daquela relação social, na qual está inserido. A partir da objetificação no mundo, ele pode adquirir uma consciência crítica (consciência-para-si), que é conhecer os fundamentos mais gerais acerca do ser – o ser social – e modificá-la, por estar diretamente em contato com aquilo que o aliena.
Aqui há o caráter científico em que o homem, conhecendo seu meio, procura dar forma; mas, na busca de modificá-lo, para alcançar e objetivar a consciência crítica, ele deve obter uma consciência nacional. Este tipo de consciência só se torna nacional quando socializada, visto que aquilo que o homem pensa e afirma só pode ganhar validade se for compartilhado. Ela surge de forma embrionária em clãs, aldeias, famílias e pequenas comunidades.
4.
Na busca de uma consciência nacional, deve-se superar todas as antinomias que aparecem como limitantes. Nos países subdesenvolvidos, a consciência ingênua vai atribuir à realidade um fundo imóvel, no qual a realidade vigente, seja de pobreza ou riqueza, já está delimitada por algo tido como natural.
Já a consciência crítica, conhecendo a inteligibilidade e a realidade factual, atribui a si o movimento da própria história e dos homens, até porque o que limita os homens são outros homens e as leis da natureza.
A realidade é passível de modificação pela técnica, fato que motivou Vieira Pinto a estudar o conceito de tecnologia. Para ele, a tecnologia equivale à episteme, ou ciência, da técnica. Saber manusear os instrumentos é um conhecimento puramente técnico, particular à realidade, muito presente na intensificação da divisão social do trabalho e do saber, na qual ocorre a fragmentação do próprio conhecimento.
Já o saber científico sobre a técnica envolve compreender seus limites técnicos, metodológicos e sociais, o que pode levar a alterações quantitativas na lógica de produção e, consequentemente, a mudanças qualitativas na própria realidade.
Para expressar a inteligibilidade do real, seja ela quantitativa ou qualitativa, Vieira Pinto observa que, por a realidade dos homens ser passível de mudança, ele vê um dinamismo que foge dos metafísicos-formais – estes que tendem a reduzir a diversidade à identidade, como os fenômenos diversos, se tornarem idênticos. Contudo, é importante frisar que o filósofo brasileiro não nega a lógica formal e compreende sua importância, pois ela é a manifestação do universal no particular, em que a realidade caótica é expressa por meio de leis regulares.
A racionalização do homem se objetiva nas coisas do mundo e lhe dá uma forma, conferindo-lhe a formalização. Pode-se chamar isso de mímesis, aquilo segundo Platão, caracteriza a arte como imitação da realidade. Já Aristóteles, com sua filosofia mais sistemática, afirma que a arte não é apenas uma cópia da realidade, mas uma mímesis capaz de transformar o real. Para o filósofo de Estagira, a arte é uma atividade racional, um tipo de técnica (téchne), pois envolve um conhecimento sobre a estrutura das coisas. Assim, toda criação humana é uma cópia do pensar, uma expressão da razão impressa no real, sempre em busca do absoluto.
Novamente, a linha divisória platônica aparece. A formalização por meio de enunciados é um salto dialético do discurso poético e das crenças, ainda que surja de impressões irregulares sobre o real, tende a ser expressa por algo mais rebuscado, como um sistema lógico-matemático, que possui uma estrutura mais próxima dos fundamentos da realidade.
Porém, outro fato é que Vieira Pinto não nega o caráter metafísico; para ele, a ontologia sobre as diversas categorias que existem e sua relação com o homem é um exercício filosófico, metafísico, moral e existencial. Mas não um existencial em busca do Nada, como ele mesmo afirma. Diante da abundância material e espiritual, os países desenvolvidos, a partir do século XX, tiveram receio de discutir conceitos de totalidade e se voltaram para as questões do Nada existencial. O pensamento se fragmentava diante do real.
5.
Vieira Pinto aponta que os filósofos do subdesenvolvimento devem compreender a existência do homem diante do todo – toda a dinâmica do mundo que o oprime e, ao mesmo tempo, cria possibilidades de emancipá-lo. Pensar a categoria “nação” de maneira concreta, partindo de sua manifestação abstrata e mediando, por meio da razão, suas múltiplas determinações para conhecê-la em sua totalidade.
O Tudo também está diante da técnica, aquela vista pelos fenomenólogos – segundo Heidegger – como forma de aprisionar o homem. Vieira Pinto nega essa visão, que para ele é uma filosofia voltada apenas ao conceito sem determinação. A partir dela, porém, realiza a investigação de sua manifestação concreta e revela: a técnica em-si não é um espírito independente, e sim criação do homem.
Assim, pode tanto aprisionar quanto emancipar. Nesse ponto se manifesta o caráter dialético, em que o próprio conceito carrega sua negação e deve ser analisado não de maneira isolada, mas em relação ao mundo.
No cenário comentado, pensemos os países subdesenvolvidos, negados a se desenvolverem, logo ao pensar por meio de uma consciência crítica – já explícito nas obras platônicas, em que o pensar e o discurso, como o logos, agem sobre o campo da moral incomodando os poderosos, vide o efeito da vida de Sócrates que culminou em um gole amargo, mas virtuoso, de cicuta –, pensemos o Brasil.
O capital disponível é utilizado na financeirização em busca de um fim em si mesmo, enriquecendo as elites, que não financiam novas tecnologias, novas formas de saber. Não há modificação do real. A divisão internacional do trabalho é praticamente a mesma das eras anteriores, com as (neo)colônias exportando commodities, sem valor agregado, para as metrópoles, que se enriquecem por meio da preservação de suas manufaturas.
Há um jogo de interesses que se concretiza pelo discurso que, sob aparência profética, sustenta falácias. Em busca de uma ordem elementar sobre as coisas, a razão, por meio da consciência crítica, encontra na possível industrialização brasileira uma dinâmica mais ampla, na qual o que até então parecia inexequível pode ser realizado e tornar-se uma realidade.
O poderio científico revela os limites da própria razão e serve de motor para superar impasses que assentam a consciência ingênua sobre o espírito da nação. Romper com esse cenário é um trabalho árduo de quem pensa em mudar o status quo.
Ser filósofo é pensar além das coisas particulares, mas nas questões universais. Pensar em categorias abrangentes, como atividade, liberdade, objetividade, historicidade, racionalidade, totalidade e nacionalidade é, talvez, ir na contramão dos séculos XX e XXI, nos quais o conhecimento se tornou apenas parcial.
O homem, produto da própria natureza e do trabalho, procurou, em certos contextos, compreender e controlar o real. Nesse sentido, o artesão, que se revela como o mito do Demiurgo, é, na verdade, o próprio homem que ordena e transforma o mundo à sua imagem e semelhança.
*Gabriel Luiz Campos Dalpiaz é mestrando em filosofia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
*Kaue Barbosa Oliveira Lopes é mestrando em filosofia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

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