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A derrota do ocidente

Do A Terra É Redonda, 11 de outubro 2025
Por EMMANUEL TODD*


Prefácio do autor à nova edição do livro La Défaite de l’Occident

1.
Menos de dois anos após a publicação francesa de La Défaite de l’Occident, em janeiro de 2024, as principais previsões do livro se concretizaram. A Rússia resistiu à tempestade militar e economicamente. A indústria militar americana está exausta. As economias e sociedades europeias estão à beira da implosão. O exército ucraniano ainda não entrou em colapso, mas o estágio de desintegração do Ocidente já foi alcançado.

Sempre fui hostil às políticas russofóbicas dos Estados Unidos e da Europa, mas, como um ocidental comprometido com a democracia liberal, um francês treinado em pesquisa na Inglaterra, filho de uma mãe que foi refugiada nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, estou devastado pelas consequências para nós, ocidentais, da guerra travada sem inteligência contra a Rússia.

Estamos apenas no início da catástrofe. Um ponto de inflexão se aproxima, além do qual as consequências finais da derrota se desenrolarão.

O “Resto do Mundo” (ou Sul Global, ou Maioria Global), que se contentava em apoiar a Rússia recusando-se a boicotar sua economia, agora demonstra abertamente seu apoio a Vladimir Putin. Os países do BRICS estão se expandindo, aceitando novos membros e aumentando sua coesão.

Convocada pelos Estados Unidos a escolher um lado, a Índia optou pela independência: as fotos de Putin, Xi e Modi reunidos na reunião de agosto de 2025 da Organização de Cooperação de Xangai permanecerão um símbolo desse momento crucial.

No entanto, a mídia ocidental continua a retratar Vladimir Putin como um monstro e os russos como servos. Essa mídia já era incapaz de imaginar que o resto do mundo os vê como líderes e seres humanos comuns, portadores de uma cultura russa específica e de um desejo de soberania. Agora temo que nossa mídia exacerbe nossa cegueira ao ser incapaz de imaginar o prestígio renovado da Rússia no resto do mundo, que tem sido explorado economicamente e tratado com arrogância pelo Ocidente durante séculos. Os russos ousaram. Desafiaram o Império e venceram.

A ironia da história é que os russos, um povo europeu e branco que fala uma língua eslava, tornaram-se o escudo militar do resto do mundo porque o Ocidente se recusou a integrá-los após a queda do comunismo. Imagino que os eslovenos estejam particularmente bem posicionados culturalmente para apreciar essa ironia, embora eu saiba muito bem, como antropólogo da família e da religião, que, apesar de sua língua eslava, a Eslovênia é muito mais próxima social e ideologicamente da Suíça do que da Rússia.

2.
Posso esboçar aqui um modelo da desarticulação do Ocidente, apesar da inconsistência da política de Donald Trump. Essas inconsistências não resultam, creio eu, de uma personalidade instável e indubitavelmente perversa, mas de um dilema insolúvel para os Estados Unidos. Por um lado, seus líderes, tanto no Pentágono quanto na Casa Branca, sabem que a guerra está perdida e que a Ucrânia terá de ser abandonada.

O bom senso, portanto, os leva a querer sair da guerra. Mas, por outro lado, o mesmo bom senso os faz perceber que a retirada da Ucrânia terá consequências dramáticas para o Império que as do Vietnã, Iraque ou Afeganistão não tiveram. Esta é, de fato, a primeira derrota estratégica americana em escala global, em um contexto de desindustrialização maciça nos Estados Unidos e de difícil reindustrialização.

A China tornou-se a oficina do mundo; sua baixíssima taxa de fertilidade certamente a impedirá de substituir os Estados Unidos, mas já é tarde demais para competir industrialmente com eles.

A desdolarização da economia global começou. Donald Trump e seus assessores não podem aceitar isso porque significaria o fim do Império. No entanto, uma era pós-imperial deveria ser o objetivo do projeto MAGA (Make America Great Again), que busca o retorno ao Estado-nação americano.

Mas para uma América cuja capacidade produtiva em bens reais é agora muito baixa, é impossível abrir mão de viver a crédito, como acontece com a produção de dólares. Tal retirada imperial-monetária significaria uma queda acentuada em seu padrão de vida, inclusive para os eleitores populares de Donald Trump. O primeiro orçamento do segundo mandato de Donald Trump, o “One Big Beautiful Bill Act“, permanece, portanto, imperial, apesar das proteções tarifárias que personificam o projeto ou sonho protecionista. O One Big Beautiful Bill Act aumenta os gastos militares e o déficit. Um déficit orçamentário nos Estados Unidos significa inevitavelmente produção de dólares e déficit comercial.

A dinâmica imperial, ou melhor, a inércia imperial, continua a minar o sonho de um retorno ao Estado-nação produtivo.

Na Europa, a derrota militar continua mal compreendida pelos líderes. Eles não dirigiram as operações. Foi o Pentágono que desenvolveu os planos para a contraofensiva ucraniana no verão de 2023 (durante o qual escrevi A derrota do Ocidente). Os militares americanos, embora tivessem seu representante ucraniano lutando na guerra, sabem que foram derrotados pela defesa russa – porque não conseguiram produzir armas suficientes e porque os militares russos eram mais inteligentes do que eles.

Os líderes europeus forneceram apenas sistemas de armas, e não os mais importantes. Desconhecendo a extensão da derrota militar, eles sabem, no entanto, que suas próprias economias foram paralisadas pela política de sanções, especialmente pela interrupção do fornecimento de energia russa barata. Cortar o continente europeu pela metade economicamente foi um ato de loucura suicida. A economia alemã está estagnada. A pobreza e a desigualdade estão aumentando em todo o Ocidente. O Reino Unido está à beira do colapso. A França não está muito atrás. As sociedades e os sistemas políticos estão paralisados.

3.
Uma dinâmica econômica e social negativa já existia antes da guerra e pressionava o Ocidente. Era visível, em graus variados, em toda a Europa Ocidental. O livre comércio está minando a base industrial. A imigração está desenvolvendo uma síndrome de identidade, particularmente entre as classes trabalhadoras, privadas de empregos seguros e bem remunerados.

Mais profundamente, a dinâmica negativa da fragmentação é cultural: o ensino superior em massa cria sociedades estratificadas nas quais os altamente educados – 20%, 30%, 40% da população – começam a viver entre si, a se considerar superiores, a desprezar as classes trabalhadoras e a rejeitar o trabalho manual e a indústria. A educação primária para todos (alfabetização universal) alimentou a democracia, criando uma sociedade homogênea com um subconsciente igualitário.

O ensino superior deu origem a oligarquias e, às vezes, a plutocracias, sociedades estratificadas invadidas por um subconsciente desigual. O paradoxo final: o desenvolvimento do ensino superior acabou produzindo um declínio nos padrões intelectuais dessas oligarquias ou plutocracias! Descrevi essa sequência há mais de um quarto de século em A ilusão econômica, publicado em 1997.

A indústria ocidental migrou para o resto do mundo e, claro, para as antigas democracias populares da Europa Oriental, que, libertadas de sua subjugação à Rússia Soviética, agora recuperaram seu status secular de periferia dominada pela Europa Ocidental. Discuto em detalhes no Capítulo 3 esse tipo de China interior, onde os trabalhadores industriais permanecem numerosos. Em toda a Europa, no entanto, o elitismo dos altamente educados deu origem ao “populismo”.

A guerra elevou as tensões europeias a um nível ainda maior. Está empobrecendo o continente. Mas, acima de tudo, como um grande fracasso estratégico, está deslegitimando líderes incapazes de conduzir seus países à vitória. O desenvolvimento de movimentos populares conservadores (geralmente chamados pelas elites jornalísticas de “populistas”, “extrema direita” ou “nacionalistas”) está se acelerando. Reform UK no Reino Unido. AfD na Alemanha, Rassemblement National na França…

Ironicamente, as sanções econômicas que a OTAN esperava que trouxessem uma “mudança de regime” na Rússia estão prestes a trazer uma cascata de “mudanças de regime” para a Europa Ocidental. As classes dominantes ocidentais estão sendo deslegitimadas pela derrota no exato momento em que a democracia autoritária da Rússia está sendo relegitimada pela vitória, ou melhor, superlegitimada, já que o retorno da Rússia à estabilidade sob Vladimir Putin inicialmente lhe garantiu legitimidade incontestável.

4.
Assim é o nosso mundo à medida que nos aproximamos de 2026. A desagregação do Ocidente assume a forma de uma “fratura hierárquica”.

Os Estados Unidos estão abrindo mão do controle da Rússia e, acredito cada vez mais, da China. Bloqueados pela China por suas importações de samário, um elemento de terra rara essencial para a aeronáutica militar, os Estados Unidos não podem mais sonhar em confrontar a China militarmente. O resto do mundo – Índia, Brasil, o mundo árabe, a África – está se aproveitando disso e se afastando. Mas os Estados Unidos estão se voltando vigorosamente contra seus “aliados” europeus e do Leste Asiático em um esforço final de superexploração e, é preciso admitir, por puro despeito.

Para escapar de sua humilhação, para esconder sua fraqueza do mundo e de si mesmos, eles estão punindo a Europa. O Império está se devorando. Este é o significado das tarifas e investimentos forçados impostos por Donald Trump aos europeus, que se tornaram súditos coloniais em um império em declínio, em vez de parceiros. A era das democracias liberais solidárias acabou.

O trumpismo é “conservadorismo populista branco”. O que está emergindo no Ocidente não é a solidariedade entre conservadores populistas, mas um colapso da solidariedade interna. A raiva resultante da derrota está levando cada país a se voltar contra os mais fracos para dar vazão ao seu ressentimento. Os Estados Unidos estão se voltando contra a Europa e o Japão. A França está reativando seu conflito com a Argélia, sua ex-colônia. Não há dúvida de que a Alemanha, que, de Olaf Scholz a Friedrich Merz, concordou em obedecer aos Estados Unidos, voltará sua humilhação contra seus parceiros europeus mais fracos. Meu próprio país, a França, me parece o mais ameaçado.

5.
Um dos conceitos fundamentais da derrota do Ocidente é o niilismo. Explico como o “estado zero” da religião protestante – a secularização em seu fim – não explica apenas o colapso da educação e da indústria americanas. O estado zero também abre um vazio metafísico.

Não sou pessoalmente um crente e não defendo um retorno à religião (não acredito que seja possível), mas, como historiador, devo observar que o desaparecimento de valores sociais de origem religiosa leva a uma crise moral, a um impulso para destruir coisas e pessoas (guerra) e, em última análise, a uma tentativa de abolir a realidade (o fenômeno transgênero para os democratas americanos e a negação do aquecimento global para os republicanos, por exemplo).

A crise existe em todos os países completamente secularizados, mas é pior naqueles onde a religião era o protestantismo ou o judaísmo, que são religiões absolutistas em sua busca pelo transcendente, em vez do catolicismo, que é mais aberto à beleza do mundo e da vida terrena. De fato, é nos Estados Unidos e em Israel que vemos o desenvolvimento de formas paródicas de religiões tradicionais, paródias que são, na minha opinião, niilistas em essência.

Essa dimensão irracional está no cerne da derrota. Essa derrota, portanto, não é apenas uma perda “técnica” de poder, mas também um esgotamento moral, uma ausência de propósito existencial positivo que leva ao niilismo.

Esse niilismo está por trás do desejo dos líderes europeus, particularmente nas costas protestantes do Báltico, de expandir a guerra contra a Rússia por meio de provocações incessantes. Esse niilismo também está por trás da desestabilização americana do Oriente Médio, a expressão máxima da fúria resultante da derrota dos Estados Unidos para a Rússia.

Acima de tudo, não sucumbamos à conclusão excessivamente simplista de que o regime de Benjamin Netanyahu em Israel está agindo de forma independente no genocídio em Gaza ou no ataque ao Irã. O protestantismo zero e o judaísmo zero certamente combinam tragicamente seus efeitos niilistas nesses surtos de violência. Mas, em todo o Oriente Médio, são os Estados Unidos, fornecendo armas e, às vezes, atacando diretamente, os responsáveis finais pelo caos. Eles empurram Israel à ação, assim como empurraram os ucranianos.

A primeira presidência de Donald Trump estabeleceu a embaixada dos EUA em Jerusalém, e foi Donald Trump quem primeiro imaginou Gaza transformada em um resort à beira-mar. Estou ciente de que seria necessário um livro para comprovar essa tese, um livro que desmantelasse as interações entre os atores, um por um. Mas, como historiador profissional envolvido em geopolítica há meio século, sinto que, assim como a Europa da OTAN, Israel deixou de ser um Estado independente. O problema com o Ocidente é, de fato, a morte programada do Estado-nação.

O Império é vasto e está se desintegrando em meio ao barulho e à fúria. Este Império já é policêntrico, dividido em seus objetivos, esquizofrênico. Mas nenhuma de suas partes é verdadeiramente independente. Donald Trump é seu “centro” atual; ele também é sua melhor expressão ideológica e prática, combinando um desejo racional de recuar para sua esfera imediata de dominação (Europa e Israel) com impulsos niilistas que favorecem a guerra. Essas tendências – retirada e violência – também se expressam no coração americano do Império, onde o princípio da fratura hierárquica opera internamente. Um número crescente de autores anglo-americanos evoca a iminência de uma guerra civil.

A plutocracia americana é pluralista. Há a plutocracia dos financistas, a dos petroleiros, a do Vale do Silício. Plutocratas trumpistas, petroleiros texanos e recém-convertidos do Vale do Silício desprezam as elites democratas instruídas da Costa Leste, que desprezam os trumpistas brancos do interior, que desprezam os democratas negros, e assim por diante.

Uma das características interessantes dos Estados Unidos hoje é que seus líderes estão encontrando cada vez mais dificuldade em distinguir entre questões internas e externas, apesar da tentativa do MAGA de conter a imigração do Sul com um muro. O exército atira em barcos que saem da Venezuela, bombardeia o Irã, entra nos centros de cidades democratas nos Estados Unidos e patrocina a força aérea israelense para um ataque ao Catar, onde há uma enorme base americana.

Qualquer leitor de ficção científica reconhecerá nesta lista perturbadora o início de uma descida à distopia, isto é, um mundo negativo onde poder, fragmentação, hierarquia, violência, pobreza e perversidade se misturam.

Portanto, continuemos sendo nós mesmos, fora da América. Mantenhamos nossa percepção do interior e do exterior, nosso senso de proporção, nosso contato com a realidade, nossa concepção do que é certo e belo.

Não nos deixemos arrastar para uma corrida precipitada rumo à guerra por nossos próprios líderes europeus, aqueles indivíduos privilegiados perdidos na história, desesperados por terem sido derrotados, aterrorizados com a ideia de um dia serem julgados por seus povos. E, acima de tudo, acima de tudo, continuemos a refletir sobre o significado das coisas.

*Emmanuel Todd é historiador e antropólogo. Pesquisador do Instituto Nacional de Estudos Demográficos francês. Autor, entre outros livros, de Após o império: ensaio sobre a decomposição do sistema americano (Edições 70). [https://amzn.to/4jUbJfs]

Tradução: Artur Scavone.

Referência



Emmanuel Todd. La défaite de l’Occident. Paris, Gallimard, 2024. 372 págs. [https://amzn.to/3J4hniF]

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