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Fairwork Brasil 2025: endividamento e precarização marcam o trabalho plataformizado. Entrevista especial com Julice Salvagni

Segundo relatório, o trabalho decente no Brasil está cada vez mais distante


Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil

Do IHU, 24 Setembro 2025
Por: Patricia Fachin 


Endividamento, precariedade, baixa remuneração e déficit de trabalho decente são alguns dos aspectos que marcam a rotina dos trabalhadores de plataforma, segundo informa o Relatório Fairwork Brasil 2025, publicado ao meio-dia de ontem, 23-09-2025. O estudo foi realizado entre agosto de 2023 e agosto de 2025 por uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade de Brasília (UnB) e Universidade Federal do Paraná (UFPR). A pesquisa apresenta os resultados da terceira edição do Fairwork no país, depois de ter analisado dez plataformas: 99, Americanas-Ame Flash, iFood, Lalamove, Loggi, Parafuzo, Rappi, Uber, InDrive e Superprof.

As relações entre empresas de plataforma e financeiras para fornecer crédito aos trabalhadores é uma das novidades apresentadas pelo relatório deste ano. Essa prática, afirma Julice Salvagni, é recente e preocupante. “Se o trabalhador fica doente ou se machuca no ambiente de trabalho, não recebe amparo da plataforma e acaba tendo que se responsabilizar por tudo isso. Como ele não tem nenhum direito social trabalhista garantido, não receberá auxílio para custear o período em que está de licença, nem auxílio saúde vinculado ao trabalho e ficará completamente desassistido numa situação de vulnerabilidade. Nesse contexto constituído, a plataforma passa a oferecer empréstimos já pré-aprovados para quem trabalha com a plataforma. Pelo menos quatro das dez plataformas avaliadas no relatório têm uma relação estabelecida com as financeiras para fornecer esses empréstimos aos trabalhadores”.

A situação, explica a entrevistada, é preocupante porque pode gerar um ciclo de endividamento para os trabalhadores e porque as plataformas “estão ganhando não só com a exploração do trabalho do trabalhador, mas também com o juro, pelo empréstimo que elas acabam concedendo a ele num momento de vulnerabilidade”.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Julice Salvagni apresenta alguns dados do relatório e pontua que “a plataformização do trabalho tem correspondido a uma parcela muito significativa dos índices de ocupações” no país. Atualmente, o Brasil registra a menor taxa de desemprego da história: 5,6%. Apesar da queda do desemprego, o prognóstico acerca do trabalho plataformizado é, segundo a pesquisadora, bastante preocupante. “A tendência é que tenhamos, assim como no caso dos motoristas, a reprodução de outros Projetos de Lei que regulamentem o trabalho sem oferecer garantias mínimas de condições de trabalho decente para quem está atuando nas plataformas. Há uma tendência, infelizmente, mesmo num governo progressista, de acentuação da precarização e da legitimação de condições de precariedade no trabalho”.

O Fairwork é um projeto sediado no Oxford Internet Institute e no WZB Berlin Social Science Center, presente em mais de 40 países e financiado pelo Ministério de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha (BMZ) por meio da agência de cooperação Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ). Nesta rodada a pesquisa também fez parte de um projeto latino-americano coordenado pela Asociación de Tecnología, Educación, Desarrollo, Investigación, Comunicación (TEDIC), Tecnología y Comunidad - Paraguay, com financiamento da Internet Society Foundation. O projeto estuda como as principais empresas da economia de plataformas se relacionam com princípios de trabalho decente. O relatório completo está disponível aqui.


Julice Salvagni (Foto: Arquivo Pessoal)

Julice Salvagni é doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e graduada em Psicologia pela Unisinos. Leciona no Departamento de Ciências Administrativas da UFRGS, na área de Estudos Organizacionais e credenciada no PPG em Políticas Públicas da mesma instituição.
Confira a entrevista.

IHU – Segundo o Relatório Fairwork Brasil 2025, o trabalho decente entre trabalhadores de plataformas está cada vez mais distante. Que processos se aprofundaram nos últimos dois anos em que a pesquisa foi realizada?

Julice Salvagni – Notamos que há um aprofundamento na precarização em relação ao trabalho por plataforma. Os dois primeiros relatórios do Fairwork já apontavam uma condição bastante alarmante em termos de como os trabalhadores e as trabalhadoras estavam interagindo com as plataformas e, agora, alguns aspectos pioraram bastante.

De maneira geral, os trabalhadores consideram que a remuneração piorou, seja por causa do valor que recebem por corrida, por hora ou por trabalho, seja por causa do aumento dos custos que eles têm com algumas atividades. A remuneração tem sido percebida como algo que tem piorado nos últimos anos. Outro ponto associado a isso diz respeito às operações logísticas, que são, em certa medida, uma novidade nas plataformas brasileiras. Antes, as plataformas tinham uma relação direta de repasse das tarefas de trabalho para o entregador. Isso acontecia, na maior parte das vezes, nas plataformas de entrega. Agora, a relação é diferente: as plataformas têm uma terceirizada, que é contratada para fazer a gestão do trabalho. Ou seja, tem mais um atravessador na relação de trabalho e um sistema ampliado de terceirização. A delegação dos serviços passa a ser feita pela empresa terceirizada e não está mais relacionada à plataforma de maneira geral. Todo esse processo que compõe as operações logísticas contribui para o agravamento de diversas situações de trabalho.

Outra questão que elencamos no relatório são os casos, cada vez mais reincidentes, de situações de assédio, em que as mulheres são acometidas na maioria das vezes. Já ouvíamos relatos dessa natureza em anos anteriores, mas, agora, os relatos de assédio se agravaram muito, sobretudo por parte das mulheres.

IHU – De acordo com o relatório, as empresas de plataforma têm disponibilizado empréstimos aos trabalhadores, enredando-os em uma lógica de endividamento. Como e desde quando esse processo está funcionando no Brasil? O que ele indica sobre a relação das plataformas com o setor financeiro?

Julice Salvagni – A questão do financiamento é algo bastante sério e preocupante e não tinha aparecido no relatório de 2023. É uma prática relativamente recente. Um dos principais resultados que o relatório traz em relação ao trabalho de plataforma é esse manejo da parceria entre empresas de plataformas e financeiras.

O que podemos apurar é que esse modelo funciona basicamente por duas vias. Uma delas é a da responsabilização integral das questões relacionadas ao trabalho aos trabalhadores. Por exemplo: quem dirige um carro para fazer o transporte individual e privado de passageiros é responsável pelo carro, pela manutenção do veículo, pelo custeio de multas, ou seja, todos os custos relacionados ao trabalho são vinculados ao trabalhador. Como ele está ganhando cada vez menos, é muito fácil que seja colocado numa situação em que não consegue custear os custos básicos do mês. Se o trabalhador fica doente ou se machuca no ambiente de trabalho, não recebe amparo da plataforma e acaba tendo que se responsabilizar por tudo isso. Como ele não tem nenhum direito social trabalhista garantido, não receberá auxílio para custear o período em que está de licença, nem auxílio saúde vinculado ao trabalho e ficará completamente desassistido numa situação de vulnerabilidade.

Neste contexto constituído, a plataforma passa a oferecer – e este é o segundo aspecto do endividamento que pudemos apurar – empréstimos já pré-aprovados para quem trabalha com a plataforma. Pelo menos quatro das dez plataformas avaliadas no relatório têm uma relação estabelecida com as financeiras para fornecer esses empréstimos aos trabalhadores. Isso é algo gravíssimo porque pode gerar uma dependência muito grande do trabalhador com a plataforma, ao passo de ele estar sempre devendo para a plataforma e pagando juros que podem ser questionáveis.

Por sua vez, as plataformas estão ganhando não só com a exploração do trabalho do trabalhador, mas também com o juro, pelo empréstimo que elas acabam concedendo a ele num momento de vulnerabilidade. Isso pode criar um círculo de dependência que é extremamente problemático.

Muitos trabalhadores que dependem do aluguel dos carros das empresas que são associadas e filiadas às plataformas relatam que começam o dia com uma dívida com a plataforma. O valor que o trabalhador está devendo por causa do aluguel do carro entra direto no aplicativo. Se acontecer qualquer problema que o impeça de trabalhar, ele fica devendo o valor do aluguel do carro para a plataforma. As empresas têm gerado essa dívida ao trabalhador ao mesmo tempo que não se responsabilizam por absolutamente nada em relação às condições de trabalho e às próprias ferramentas que os trabalhadores precisam utilizar para desenvolver o trabalho.

IHU – Além daquelas analisadas em outros relatórios, este ano o Fairwork analisa novas plataformas, como a Superprof e a InDrive. Qual é a situação dos trabalhadores dessas empresas?

Julice Salvagni – Neste ano, nós avaliamos, de forma inédita, uma plataforma de educação, a Superprof. Isso era algo que tínhamos em mente há algum tempo para ampliar o leque de plataformas e não restringirmos a análise a apenas às mais convencionais, que são as de entrega e de transporte. A Superprof conseguiu um ponto na perspectiva do pagamento, referente ao princípio do pagamento justo, porque, de fato, os entrevistados disseram que, pelo menos, estão assegurados com valores que, tirados todos os custos, corresponderiam a um valor hora superior à média do salário mínimo – considerando a hora, não o valor total. O mesmo aconteceu com a InDrive.

Essas duas plataformas têm uma característica peculiar e diferente das demais, que é o fato de os trabalhadores poderem negociar diretamente com o cliente, no caso o aluno ou o passageiro, o valor que querem pagar. Em alguma medida isto é interessante, porque os trabalhadores não têm um valor/hora definido, então eles combinam um valor que fique bom para ambos os serviços prestados. Mas é claro que o relatório também alerta para um risco de vulnerabilidade.

Hoje, em que há um contexto de praticamente pleno emprego, as pessoas não vão se submeter, em tese, a condições de trabalho que sejam insalubres. Mas, numa condição social em que haja desemprego alto, elas podem passar a trabalhar por salários menores. Quer dizer, o modelo dessas plataformas é, na nossa concepção, mais interessante do que um modelo que prevê um valor fixo por atividade, mas ele também está à mercê das oscilações dos contextos sociais. Então, este também não é um modelo ideal e que vai servir sempre.

Superprof e InDrive têm uma característica peculiar e diferente das demais, que é o fato de os trabalhadores poderem negociar diretamente com o cliente, no caso o aluno ou o passageiro, o valor que querem pagar – Julice Salvagni Tweet.

Entretanto, para o contexto atual, esse modelo tem se mostrado mais interessante do ponto de vista dos trabalhadores, porque eles podem ter um controle um pouco maior sobre as remunerações do seu trabalho. A Superprof, assim como todas as outras empresas de plataforma, não tem grandes perspectivas de seguridade e garantias sociais, mas, pelo tipo de serviço, por contemplar mais professores de idiomas e de matérias de reforço, consegue oferecer uma remuneração um pouco maior.

A InDrive, apesar de vários problemas que encontramos na análise de outros princípios, na questão da remuneração, é uma empresa que pontuou por causa da lógica de oferta de valores e de combinação de valores entre o motorista e o passageiro. Esse modelo não impera em todas as situações, mas, no atual contexto do país, é algo que tem permitido que os trabalhadores consigam chegar a uma remuneração um pouco mais satisfatória.

IHU – A regulamentação do trabalho em plataformas foi aprovada no Chile, na Colômbia, no Uruguai. Está em processo no Paraguai, no Peru, no Brasil e no Equador, e não foi aprovado na Argentina. Qual é a especificidade da discussão em cada país? Quais são os principais pontos de tensão nestas discussões?

Julice Salvagni – Peru e Equador têm uma condição um pouco distinta: preveem alguma relação de reconhecimento e de vínculo. Mas isso está em processo e não quer dizer que vá acontecer de fato, porque muita coisa pode mudar. Isso torna o panorama em termos de regulamentação da América Latina muito parecido.

A regulamentação no Brasil, que é específica para a questão dos motoristas, é algo preocupante e insatisfatória porque não alcança os direitos sociais mínimos – Julice Salvagni Tweet.

IHU – Quais os principais impasses na discussão sobre a regulamentação do trabalho em plataformas digitais no Brasil?

Julice Salvagni – A regulamentação no Brasil, que é específica para a questão dos motoristas, é algo preocupante e insatisfatória porque não alcança os direitos sociais mínimos. As questões previstas na regulamentação do trabalho em plataformas estão muito aquém daquilo que imaginamos que deveria ser um trabalho decente. Trata-se de uma regulamentação da desregulamentação do trabalho. Isso é muito preocupante porque, à medida que não há instâncias efetivamente protetivas, que de alguma forma regulamentem o trabalho, ocorre um aval para que as empresas possam continuar operando da maneira como estão e, como estão, já vimos que é altamente precário.

IHU – O Brasil registrou o índice mais baixo de desemprego da história: 5,6% em julho deste ano. Como analisa esse dado à luz da plataformização? O país tem motivos para comemorar o baixo índice de desemprego?

Julice Salvagni – O cenário de baixo desemprego é algo que podemos comemorar. Numa primeira análise, quando consideramos os dados de emprego e desemprego no Brasil, esse é um primeiro ponto muito importante. Mas também precisamos analisar qual é a qualidade das vagas ocupadas pelas pessoas empregadas. As pessoas que estão empregadas estão fazendo o que? Quanto elas estão ganhando? Quais são as condições de trabalho que elas têm? Quais os direitos que elas acumulam nessas atividades? Esse é outro ponto muito importante.

A plataformização do trabalho tem correspondido a uma parcela muito significativa dos índices de ocupações. Uma parcela das pessoas que estão trabalhando ocupa o trabalho nas plataformas digitais e, portanto, tem um trabalho que não é assegurado.

O cenário de baixo desemprego é algo que podemos comemorar. (…) Mas também precisamos analisar qual é a qualidade das vagas ocupadas pelas pessoas empregadas – Julice Salvagni Tweet.

IHU – A partir dos dados do Relatório Fairwork Brasil 2025 é possível antecipar como a relação entre governos, plataformas e trabalhadores vai se desenrolar nos próximos anos? Caminha-se para qual modelo de trabalho?

Julice Salvagni – O acumulado de estudos que já temos sobre as plataformas digitais no Brasil nos permite fazer algumas inferências sobre o futuro. A primeira delas é a questão da irreversibilidade da plataformização do trabalho. Parece-nos ser irreversível a abrangência da plataformização no mercado de trabalho. Estimamos que a plataformização não só vai crescer como também irá ampliar cada vez mais para outras atividades que não aquelas que são majoritárias ainda hoje, como a dos motoristas e entregadores.

No Brasil, observando a regulamentação formalizada no ano passado e o andar do jogo entre governo, plataformas e trabalhadores, eu diria que o prognóstico é bastante preocupante. A tendência é que tenhamos, assim como no caso dos motoristas, a reprodução de outros Projetos de Lei que regulamentem o trabalho sem oferecer garantias mínimas de condições de trabalho decente para quem está atuando nas plataformas. Há uma tendência, infelizmente, mesmo num governo progressista, de acentuação da precarização e da legitimação de condições de precariedade no trabalho.

Estimamos que a plataformização não só vai crescer como também irá ampliar cada vez mais para outras atividades que não aquelas que são majoritárias ainda hoje – Julice Salvagni Tweet.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Julice Salvagni – Apenas dizer que esta é uma pesquisa de abordagem qualitativa. Existem outras pesquisas sobre a plataformização que lançam outros olhares para o fenômeno, abordando questões mais estatísticas e econômicas ou outras características do trabalho por plataforma. A nossa pesquisa tem como foco explorar as narrativas e as percepções dos trabalhadores acerca de todas essas questões que tangem o trabalho decente.

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