Por Fernando Augusto Fernandes; Advogado criminalista e pesquisador
Argumentos de que a Constituição permite anistia a crimes contra a democracia afrontam o princípio da isonomia
Rio de Janeiro (RJ), 21/09/25 - Manifestantes protestam contra a PEC da Blindagem e PL da Anistia na orla de Copacabana. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Assim como a língua, a interpretação constitucional é viva e se modifica à medida que a sociedade evolui. Até outro dia, as pessoas fumavam em avião, cinema, em todo e qualquer lugar. Esse direito inalienável da “autodestruição” foi compatibilizado com a garantia constitucional da saúde (art. 5º – direito à vida, art. 6º – a saúde). É preciso reconhecer o direito de não criminalização da autodestruição, ressalvando-se, contudo, a vedação quando houver prejuízo a terceiros, como no caso dos fumantes passivos.
O mesmo aconteceu em relação à independência dos Poderes. Na formulação da Constituição, entre as prerrogativas atribuídas a deputados e senadores, estava a de não poderem ser processados sem a autorização da respectiva Casa Legislativa (redação antiga do art. 53, § 1º, da Constituição Federal).
A vontade popular exigiu uma interpretação de que o princípio da isonomia, talhado no art. 5º, de que “todos são iguais perante a lei”, não comporta o privilégio de uma imunidade que extrapole o necessário para o exercício do mandato popular.
O povo e o Supremo Tribunal Federal passaram a interpretar que é inadmissível que a proteção ao exercício do mandato extrapolasse para o abuso. Por isso, garantido o direito à palavra, a crítica necessária ao nobre papel político, mas não ao desvirtuamento para cometimento de crimes comuns, como corrupção, estupros e assassinatos. Assim, o Congresso alterou o artigo constitucional. Mesmo o exercício da palavra não pode descambar para o cometimento de crimes, como injúria, difamação ou mesmo incitação ao crime.
A interpretação do texto constitucional, portanto, é dinâmica e evolui na medida em que a sociedade amadurece rumo à secularização. Assim como os atos administrativos exigem motivação para sua legalidade, não é possível admitir que, sob o pretexto da separação dos Poderes, possa haver uma involução em relação à garantia constitucional da isonomia. Ela já é mitigada para a proteção do mandato com a garantia do foro.
Dizer que o Congresso tudo pode em nome da separação de Poderes ofenderia o âmago constitucional de que “todo poder emana do povo”, bem como o núcleo do art. 5º, relativo às garantias individuais, que devem ser preservadas, especialmente o princípio de que todos são iguais perante a lei.
Seria possível admitir que uma maioria do Congresso Nacional pudesse hoje revogar o crime de racismo? Revogar a proteção da mulher em relação à Lei Maria da Penha, ou permitir a homofobia? Revogar a criminalização da divulgação do nazismo? Pergunta-se se o Congresso tudo pode, ou se essas conquistas legislativas e mudanças constitucionais citadas se inscrevem numa interpretação de direito natural que caminha a garantir os direitos individuais. Quando pune o racismo, o nazismo e a homofobia, afirma-se que nem mesmo o Congresso poderia revogar tais avanços.
Da mesma forma que o Supremo Tribunal Federal acabou limitando a interpretação da imunidade parlamentar em relação às palavras, para garantir que essa imunidade sirva exclusivamente ao exercício parlamentar, uma alteração do texto visando a “blindagem” dos parlamentares a todo e qualquer crime pode ter, pelo Supremo Tribunal Federal, uma interpretação restritiva de sua invalidade absoluta. Ou seja, não valer em relação à acusação de crimes comuns e contra a democracia, limitando essa eventual prerrogativa a acusações que tenham vínculo direto com o mandato. Nenhuma alteração pode ofender o art. 5º, mesmo que travestida de separação de Poderes.
Quanto ao debate sobre a anistia, seja “total e irrestrita”, seja dita “light” ou com o novo nome “PL da redução das penas”, todas essas modalidades revelam-se inconstitucionais.
Primeiro é preciso claramente diferenciar o que foi a anistia em 1979 e a debatida em democracia. Vivemos uma ditadura de 1964 em diante – esta que fechou o Congresso Nacional, impediu eleições diretas, criou censura. Nessa oportunidade, três ministros da Suprema Corte foram aposentados compulsoriamente (cassados), e dois, em razão disso, pediram aposentadoria. Deputados foram cassados igualmente, não pelas Casas Legislativas, mas por ordens militares, além de pessoas serem presas por legislações especiais não votadas no Congresso. Foram editadas leis de segurança nacional e alterado o juiz natural, extinguiu-se a possibilidade de habeas corpus para crimes políticos. Os militares tiraram a competência dos tribunais civis, passando julgamentos para os tribunais militares. Impediram recursos do Superior Tribunal Militar para o Supremo Tribunal Federal.
Contra esses atos de ditadura houve resistência, várias através de ideias, discursos, publicações. Esses atos foram criminalizados pelas leis de segurança nacional. Pessoas foram presas e torturadas, na maior parte das vezes por simples protestos, tentativas de reuniões e resistências intelectuais.
Também houve resistência armada, guerrilhas, sequestro de embaixadores, com o fim de libertar pessoas presas pela ditadura.
Os militares mataram, torturaram e fizeram desaparecer corpos de pessoas desarmadas, sua grande maioria por resistência pacífica. Vejam o caso de Vladimir Herzog, ou mesmo do deputado Rubens Paiva, relatado no filme Ainda Estou Aqui.
A descriminalização desses atos de resistência pacífica é o que visava a anistia. É evidente que ela se ampliou para os casos da resistência armada realizada contra os atos daqueles que tinham o poder militar, que matavam e torturavam.
Os militares aproveitaram a ideia de anistia “ampla, geral e irrestrita” para se autoanistiarem sobre homicídios, torturas e desaparecimentos.
A Constituição Federal trouxe no art. 5º a vedação da anistia. Importante transcrever os incisos da carta política:
[...] XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; (Regulamento) XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; [...].
Uma leitura ahistórica e não aprofundada pode sustentar que o inciso XLIV proibiu somente fiança e prescrição para os crimes armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, enquanto o dispositivo anterior, inc. XLIII, vetou a graça ou anistia somente para tortura, terrorismo, tráfico e crimes hediondos. A conclusão superficial seria quanto à possibilidade de anistia.
Ocorre que a Constituição de 1988, ao se referir a terrorismo, é anterior à lei que definiu o crime de terrorismo (Lei nº 13.260/1996). Portanto, o que a Constituição definia como terrorista eram aqueles ditos atos terroristas definidos pela lei de segurança vigente.
Entre aqueles crimes ditos terroristas estão:
Art. 16. Integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça. Pena: reclusão, de 1 a 5 anos.
Art. 17. Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito. Pena: reclusão, de 3 a 15 anos. Parágrafo único. Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até a metade; se resulta morte, aumenta-se até o dobro.
Art. 17. Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito. Pena: reclusão, de 3 a 15 anos. Parágrafo único. Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até a metade; se resulta morte, aumenta-se até o dobro.
Art. 18. Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados. Pena: reclusão, de 2 a 6 anos.
A Lei nº 14.197/2021, que estabeleceu os crimes contra o Estado Democrático de Direito, substituiu exatamente a Lei de Segurança, estabelecendo os crimes em defesa do Estado Democrático. Tais atos são considerados, pela Constituição, crimes graves aos quais a anistia não pode ser aplicada.
No que se refere à abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tem-se:
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Já em relação ao golpe de Estado:
Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.
A acusação de terrorismo pelo princípio da reserva legal somente pode ocorrer aos atos definidos a partir da Lei de 1996, que sequer prevê motivação política. Mas a vedação de graça e anistia aos atos terroristas, para a Carta Magna, inclui os definidos pela lei de defesa do Estado Democrático.
Assim, o inciso XLIV, quando se refere à ação de grupos armados contra a Constituição e o Estado de Direito, o faz como atos terroristas e indica a necessidade de punição, inclusive de um ato preparatório, que é a reunião de pessoas em quadrilha ou organização criminosa armada para atentar contra a democracia. A definição disso, no âmbito constitucional, é terrorismo.
Atos contra a democracia, contra a ordem constitucional e o Estado de Direito, para a Carta Magna, são atos terroristas, definidos ou não em lei. Veja que o dispositivo delega à lei a definição dos crimes hediondos, mas não de terrorismo.
Há, inclusive, paralelismo, pois a vedação é de anistia a atos terroristas, incluídos os antidemocráticos, assim como à tortura, que são crimes de Estado. Há uma vedação ao terrorismo estatal através da tortura.
São inconstitucionais tanto a tentativa de “blindagem” que ofenda a isonomia constitucional quanto o plano de anistia aos atos terroristas de atentado à democracia. E de igual forma, reduções de pena porque, como apontou o ministro Flávio Dino em seu voto, há uma proporcionalidade entre a punição contra atos democráticos e os crimes contra o patrimônio.
Recentemente, Lenio Streck publicou que seria vergonhoso que o ato de roubar um botijão de gás recebesse pena menor do que o de atentar contra a democracia.
A Constituição exige respeito aos princípios e, em relação a eles, nem o Congresso, nem qualquer outro Poder pode atentar. Os projetos são inconstitucionais, e o Brasil precisa de estabilidade política para seguir seu rumo democrático, concentrando-se em temas que o povo quer ver discutidos, como saúde, educação, isenção de impostos para os menos favorecidos e maior contribuição da parcela abastada da sociedade.
A Lei nº 14.197/2021, que estabeleceu os crimes contra o Estado Democrático de Direito, substituiu exatamente a Lei de Segurança, estabelecendo os crimes em defesa do Estado Democrático. Tais atos são considerados, pela Constituição, crimes graves aos quais a anistia não pode ser aplicada.
No que se refere à abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tem-se:
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Já em relação ao golpe de Estado:
Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.
A acusação de terrorismo pelo princípio da reserva legal somente pode ocorrer aos atos definidos a partir da Lei de 1996, que sequer prevê motivação política. Mas a vedação de graça e anistia aos atos terroristas, para a Carta Magna, inclui os definidos pela lei de defesa do Estado Democrático.
Assim, o inciso XLIV, quando se refere à ação de grupos armados contra a Constituição e o Estado de Direito, o faz como atos terroristas e indica a necessidade de punição, inclusive de um ato preparatório, que é a reunião de pessoas em quadrilha ou organização criminosa armada para atentar contra a democracia. A definição disso, no âmbito constitucional, é terrorismo.
Atos contra a democracia, contra a ordem constitucional e o Estado de Direito, para a Carta Magna, são atos terroristas, definidos ou não em lei. Veja que o dispositivo delega à lei a definição dos crimes hediondos, mas não de terrorismo.
Há, inclusive, paralelismo, pois a vedação é de anistia a atos terroristas, incluídos os antidemocráticos, assim como à tortura, que são crimes de Estado. Há uma vedação ao terrorismo estatal através da tortura.
São inconstitucionais tanto a tentativa de “blindagem” que ofenda a isonomia constitucional quanto o plano de anistia aos atos terroristas de atentado à democracia. E de igual forma, reduções de pena porque, como apontou o ministro Flávio Dino em seu voto, há uma proporcionalidade entre a punição contra atos democráticos e os crimes contra o patrimônio.
Recentemente, Lenio Streck publicou que seria vergonhoso que o ato de roubar um botijão de gás recebesse pena menor do que o de atentar contra a democracia.
A Constituição exige respeito aos princípios e, em relação a eles, nem o Congresso, nem qualquer outro Poder pode atentar. Os projetos são inconstitucionais, e o Brasil precisa de estabilidade política para seguir seu rumo democrático, concentrando-se em temas que o povo quer ver discutidos, como saúde, educação, isenção de impostos para os menos favorecidos e maior contribuição da parcela abastada da sociedade.
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