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O capitalismo como modo de transição

Do A Terra É Redonda, 23 de junho 2025
Por JOÃO P. PEREIRA*



Breves reflexões sobre “O capital”, de Karl Marx

As reflexões sobre O capital aqui têm duplo sentido: sobre a obra de Marx e sobre o objeto de estudo. A “Crítica da economia política” de Marx, subtítulo de sua grande obra, não é apenas uma crítica gnosiológica, das teorias, mas também da economia política real, factual, ontológica, ou seja, uma crítica do valor, do capital e do capitalismo.

Sobre o estudo proposto, tais parecem ser as obras e autores que oferecem contribuições essenciais para sua melhor compreensão: Gênese e estrutura de O Capital – Roman Rosdolsky; Marx: lógica e política, tomos I, II e III – Ruy Fausto. De qualquer modo, nada substitui a leitura direta, reiterada e atenta da obra em si. A seguir, temos algumas observações que servem para aprofundar o sentido deste livro.

O capitalismo como modo de transição

Tal como o primitivismo, o escravismo e o feudalismo, o capitalismo é, de fato, toda uma época histórica, um modo de vida completo em si mesmo. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de uma transição, quase mera transição, entre as sociedades de classe anteriores e o futuro socialista.

Isso já se mostra em O Capital, quando Marx afirma que a mesma máquina que produz, de um lado, trabalho excessivo e, de outro, desemprego, também é ferramenta útil por excelência para reduzir ao mínimo a jornada de trabalho. Com certo exagero relativo à robótica e automação de hoje, o teórico pensou o conteúdo material tanto como forma social capitalista, como capital, quanto como forma socialista.

Nisso acertou e errou, pois a terceira revolução industrial é que, na prática, coloca o valor em crise; mas aí, na sua elaboração, já está implícito o caráter transicional do capitalismo.

De um lado, o capitalismo é uma quase constante onda periódica de quebras econômicas, de crise em crise. Isso já é sinal de seu caráter de transição e de seu desejo de passar de algo para outro. Mas o inverso prova ainda mais. Para o capital, pleno emprego não é o inverso da crise, sequer seu sinal, mas é a própria crise mesma, enquanto a “crise propriamente dita” é, na verdade, uma solução temporária.

Com o pleno emprego posto na realidade, temos um sinal sintomático da tendência ao socialismo: os lucros caem, os trabalhadores fazem mais greves e têm aumento salarial, a produção está a todo vapor – isso é o terror para a burguesia, que precisa resolver tal estado de coisas negando o futuro, derrubando a economia contra sua tendência ao socialismo (nas greves, na queda do lucro, etc.).

O mais curioso ocorre na ciência. Os ricos precisam da religião para que os pobres não os matem; precisam da religiosidade e da ignorância científica e cultural das massas. Porém, precisam, mesmo que parcialmente, da cientificidade para lucrar mais, fragilizar o valor de uso e manipular. Temos, então, a infelicidade e o fanatismo na era do conhecimento subatômico e quântico.

É a contradição expressada por Carl Sagan sobre uma sociedade que depende dos frutos da ciência, mas a ignora. Aí vemos como o capitalismo está preso ao passado classista, mas, deformado por isso, tem de desenvolver, mesmo que parcialmente, a ciência.

É como se o capitalismo fosse o socialismo de cabeça para baixo, precisando ser desvirado para livrar-se do afogamento.

O comércio, inclusive o comércio de dinheiro, marcou o processo de fim de outros sistemas; agora, está como processo de fim do mundo de sistemas classistas. Quando Carl Polanyi diz que o dinheiro, o trabalho e a natureza degeneram se transformados em mercadorias, na verdade, acaba por dizer que esta é uma sociedade de transição que degenera a si mesma porque, sem saber, o dinheiro, a força de trabalho e a natureza são sempre mercadorias neste modo de vida. Tal caráter destrutivo e autodestrutivo é típico dessa transição histórica.

O fato de a humanidade poder se extinguir de várias maneiras avisa sobre o estado em que estamos. Este é o ponto nodal para um salto aos céus ou ao abismo.

Vale a pena destacar que as classes dominantes focavam suas forças armadas entre homens do “povo”, livres. Quando profissionalizaram seus exércitos, tivemos a decadência. O capitalismo tem disso: de um lado, profissionalizam-se as forças armadas em toda a hierarquia e, de outro, sempre teve que colocar os escravos assalariados como parte vital de seu corpo de membros armados.

Quando se realiza como totalidade, o sistema entra em seu ocaso – em sua máxima contradição, quando tenta impedir o automovimento.

Enfim, a democracia burguesa, com todas as demais formas de despotismo esclarecido burguês, bem demonstra, por falsificação, a tendência a uma futura liberdade real: uma democracia de base e participativa, também dentro das empresas.

Três livros: estrutura fundamental

Nossa breve exposição anterior evidencia que a dialética tem três categorias centrais: (i) Totalidade (integração); (ii) Contradição (relação); (iii) Movimento (espaço-matéria).

Por coincidência, chega-se à conclusão de que esta é a organização dos três livros de O capital. No livro I, “O processo de produção do capital”, prioriza-se – sem excluir as demais – a contradição, como na luta de classes, na chamada acumulação primitiva, nas contradições imanentes ao capital-valor e na oposição entre extensividade e intensividade da jornada de trabalho, entre outras.

Lembremos, porém, que contradição dialética não é igual a conflito, como se pensa vulgarmente, embora possa sê-lo em muitos casos. O livro I leva em conta que o capital é uma relação social, não coisa, e, ademais, relação contraditória.

O livro II, “O processo de circulação do capital”, prioriza o movimento como sua categoria base primeira. Já no início deste, Marx afirma: “O capital, como valor que acresce, implica relações de classe, determinado caráter social que se baseia na existência do trabalho assalariado. Mas, além disso, é movimento, processo com diferentes estádios, o qual abrange três formas diferentes do processo cíclico. Só pode ser apreendido como movimento, e não como algo estático. Aqueles que acham que atribuir ao valor existência independente é mera abstração esquecem que o movimento do capital industrial é essa abstração como realidade operante (in actu)”. (Marx, 2014, pp. 119-120.)

Sobre isso, vale um parênteses. A citação acima relaciona-se com a seguinte equação qualitativa e categorial: o abstrato é o concreto em movimento – o valor é o capital em processo.

O livro III, O processo global de produção capitalista, prioriza a totalidade, ou seja, a totalidade que inclui, juntos, contradição e movimento de modo pleno e integral. O título de cada tomo já conduz a tal conclusão, como podemos observar.

A seção VII, O processo de acumulação do capital, última do tomo 2 do Livro I, marca a transição para o Livro II ao aumentar o destaque da categoria movimento (e, em certa medida, da totalidade). Já no Livro II, a seção III, A reprodução e a circulação de todo o capital social, também última do tomo, indica a entrada da totalidade como transição para o Livro III.

Além disso, o Livro I demonstra o surgimento e o desenvolvimento da produção capitalista. O Livro II apresenta o capital industrial em sua fase robusta, como um “adulto”. O Livro III aborda a produção em direção ao seu fim sistêmico, tratando explicitamente das crises e da queda da taxa de lucro. Isso é, ou deveria ser, mais evidente se se evita cair na oposição antidialética entre exposição lógica e exposição histórica; esta última pode estar contida na primeira.

A síntese da obra pode ser apresentada da seguinte forma: a polêmica sobre se O Capital é “uma crítica ao capitalismo do ponto de vista do trabalho” (Engels) ou “uma crítica ao caráter historicamente determinado do trabalho no capitalismo” (Postone) é resolvida pela formulação de que se trata de “uma crítica do (ponto de vista do) trabalho ao trabalho no capitalismo”. A tese e a antítese – a visão sindicalista e a visão intelectualista, uma interna e outra externa – encontram resolução na síntese unificadora.

*João P. Pereira é graduando de Ciências Humanas na Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Referências

FAUSTO, R. Marx: lógica e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.

MARX, K. O capital I. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, K. O Capital. Livro 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

MARX, K. O Capital III. São Paulo: Boitempo, 2016.

ROSDOLSKY, R. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.

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