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Brasil sitiado

Do A Terra É Redonda, 23 de junho 2025
Por ZENO SOARES CROCETTI*


Imagem: anna-m. w.

O novo imperialismo e a disputa pela soberania latino-americana

Nos bastidores do século XXI, uma guerra silenciosa se intensifica sobre a América Latina. Longe dos tanques e fuzis que marcaram o imperialismo clássico, emerge uma nova forma de dominação: seletiva, reticulada, infraestrutural e cognitiva.

Neste cenário, o Brasil ocupa posição estratégica – e, por isso mesmo, está no centro de um cerco que combina pressões geopolíticas, dispositivos simbólicos, infraestruturas técnicas e captura subjetiva. Trata-se do imperialismo 2.0.

O uso corporativo do território

Inspirado nos conceitos de Milton Santos, o texto denuncia a reconfiguração do território brasileiro como espaço funcional ao capital globalizado. Portos, corredores logísticos, redes digitais e zonas de produção são moldados para favorecer interesses de grandes corporações e seus aliados estatais. Esse “uso corporativo do território” opera de forma seletiva: enquanto alguns espaços são hiperconectados aos circuitos da economia mundial, outros são abandonados, militarizados ou transformados em zonas de sacrifício.

Essa seletividade se manifesta nos investimentos públicos, nas infraestruturas e nas legislações que priorizam áreas estratégicas para o capital em detrimento das populações periféricas. O território, nesse modelo, é transformado em plataforma técnica – mais do que espaço de vida, torna-se interface de comando e dominação.

O cerco geoestratégico

O cerco ao Brasil não é apenas retórico. Ele se materializa em uma arquitetura militar e diplomática comandada pelos Estados Unidos, que inclui a reativação da 4ª Frota Naval, a instalação de bases em países vizinhos (como Paraguai e Colômbia) e parcerias militares sob o pretexto da “segurança regional”. A Amazônia, por sua vez, torna-se alvo prioritário de disputas – travestidas de preocupações ambientais – que escamoteiam a lógica de espoliação dos recursos e controle das rotas estratégicas.

Trata-se de uma verdadeira guerra infraestrutural que se desenrola em três frentes simultâneas: (i) Física: controle de bases, estradas, rotas comerciais e logísticas; (ii) Informacional: domínio de fluxos de dados, narrativas e sistemas de comunicação; (iii) Cognitiva: moldagem de afetos, desejos e percepções por meio de mídias, plataformas e algoritmos.

Nessa guerra, o território não é apenas geográfico – ele se estende à psicoesfera. A dominação simbólica, que Antonio Gramsci associava à hegemonia cultural, ganha novos contornos com o big data, as redes sociais e a “vigilância voluntária” descrita por Byung-Chul Han.

Figura 1 – Brasil sitiado

Fonte: Elaboração do autor, com base no mapa do IBGE, 2025.

Recolonização cognitiva

O imperialismo do século XXI se apresenta com rosto humano, linguagem técnica e retórica humanitária. No entanto, a dominação continua. Como mostra o ensaio, o Brasil é atravessado por mecanismos de recolonização cognitiva: elites intelectuais e políticas internalizam os padrões, desejos e códigos simbólicos do Norte Global, comprometendo a formulação de um projeto nacional autônomo.

Ao lado da dependência econômica (marcada por dívidas externas, privatizações e vulnerabilidade comercial), há uma dependência mental: ideias, modelos de desenvolvimento e formas de comunicação são importadas acriticamente. A soberania se dissolve quando o pensamento próprio é substituído por narrativas exógenas.

O Brasil como nó estratégico

Por sua dimensão geográfica, peso econômico e abundância de recursos, o Brasil representa um obstáculo à manutenção da hegemonia estadunidense na América do Sul. Por isso, como destaca Crocetti, o país sofre ações coordenadas de contenção e desestabilização: judicialização da política (lawfare), ataque às cadeias produtivas nacionais, sabotagem da política industrial e controle das infraestruturas de comunicação.

Documentos estratégicos como a National Defense Strategy (NDS) e os relatórios do Southern Command (SOUTHCOM) revelam a doutrina geopolítica dos EUA, que combina hard power (militar) e soft power (midiático, normativo, tecnológico). A contenção do Brasil integra uma lógica mais ampla de “imperialismo reticulado”, que articula pontos estratégicos do globo por meio de fluxos seletivos, controle técnico e poder simbólico.

Apesar do cenário adverso, o ensaio aponta caminhos de resistência. A integração regional, as economias solidárias, os pactos territoriais soberanos e uma nova política de comunicação podem oferecer alternativas à dependência. Isso exige mais do que reação: requer a construção de uma geopolítica da libertação, que articule território, cultura, tecnologia e justiça social.

Mais do que denunciar o imperialismo, é necessário desenhar um novo imaginário latino-americano, onde a soberania não seja apenas bandeira política, mas princípio organizador de uma nova ordem territorial.

*Zeno Soares Crocetti é professor na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

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