Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS*
No Carnaval brasileiro a verdadeira paródia é aquela realidade sobre a qual se está parodiando
1.
Com o auxílio da pesquisa etimológica, o filólogo suíço Karl Meuli publicou em uma de suas obras colecionadas, em 1971, um ensaio sobre a origem do carnaval. Trata-se de uma conferência de 1963, de nome “A origem do carnaval”, em que Karl Meuli faz um interessante estudo sobre o tema. Segundo diz Karl Meuli, a palavra carnaval deriva da palavra italiana carnavale, mas explicações linguísticas, mitológicas e etimológicas são ainda mais amplas e diversas.
Karl Meuli lembra que já se pensou que “carnaval” derivaria ou do carus navalis (carruagem naval),do deus grego Dionísio em Atenas, ou até mesmo do navio da deusa egípcia Ísis. Mas para o etimólogo suíço, foram Merlo e Wartburg os linguistas quem demonstraram de modo irrefutável “(..) que a palavra [carnaval] se refere ao início dos quarenta dias de jejum, não no sentido de carne, vale!, – Carne, adeus! –, mas no sentido de carnem levare, ‘trazer, retirar a carne da mesa’ (Roma, século XIII: carnelevarium; Milão, século XIV: carnelevamen)” (Meuli, 2021, p. 1114).
O sentido de “retirar a carne da mesa” é o de justamente se preparar para se receber o Corpo de Cristo, nos quarenta dias que antecedem a Páscoa cristã, a semana da via crucis de Cristo, de sua morte e de sua ressurreição. Segundo diz Karl Meuli, no século XIII, a Igreja inaugurou a solenidade da Quaresma: “os prazeres da carne devem cessar”. E isto significou uma mudança de hábitos na Europa. Conforme diz o filólogo, desde o Concílio de Benevento, as festas, com suas exuberantes máscaras, de tradições muito mais antigas que a própria Igreja, até eram toleradas, mas deveriam se encerrar na quarta-feira de cinzas.
Essa tradição segue em curso, mesmo em um país que já não é mais colônia da Europa, como o Brasil. O carnaval, aqui, deve se encerrar no início da Quaresma. Mesmo em tempos republicanos, supostamente secularizados, o carnaval brasileiro respeita a medieval determinação da Igreja. Sobre esses temas, vou me delimitar nesse ensaio a falar de um ponto mais específico, sobre o qual Karl Meuli acabou por mencionar mais de uma vez no seu referido ensaio sobre a origem do carnaval: sobre como a festa do carnaval, seus adereços, máscaras, seus excessos, provocam o que ele chamou de “anarquia legal” (Meuli, 2021, p. 1241).
A ideia de que as normas sociais ficam suspensas temporariamente, produzindo, com isto, uma troca de papéis sociais, de posturas – permitindo, inclusive, o trânsito entre o que entendemos por humano e animal, homem e mulher, reis e súditos – talvez não seja algo desconhecido e novo para as discussões sociológicas e antropológicas em torno da festividade do carnaval no Brasil.
2.
Em 1990, no seu Carnavais, malandros e heróis, o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta chamou essa ideia de “inversão”, ou então de “inversão carnavalesca”, quando se junta “o que está normalmente separado”:
“É precisamente isso que parece ocorrer em momentos como o do carnaval brasileiro, quando o uso das fantasias permite relacionar ao núcleo (ou centro do sistema social) toda uma legião de seres, papéis sociais e categorias que, no curso da vida diária, estão escondidos e marginalizados” (DaMatta, p. 84).
Lembrando de Radcliff-Brown, Roberto DaMatta compara a inversão carnavalesca com os rituais religiosos, justamente porque esses são rituais que lidam com a dialética entre a “evitação” de agentes separados socialmente e a “inversão” dessa separação, a qual gera efeitos conjuntivos e disjuntivos entre estes mesmos agentes. A fim de realizar “a comunicação entre agentes da relação por vias normais”, as relações carnavalescas são invertidas, interrompendo temporariamente aquelas regras que “evitam” o contato entre aqueles e aquelas que estão separados por diversos tipos de regras.
Para Roberto DaMatta, citando Lévi-Strauss, isso ocorre analogamente ao ritual religioso católico da missa, quando, como, por exemplo, a ordem estabelecida, que gera evitação entre seus agentes, é invertida: “Deus desce até os homens; os homens sobem até Deus; objetos sagrados são incorporados aos fiéis; há um local apropriado para a confusão de categorias etc.” (DaMatta, 2012, p. 87).
A analogia entre carnaval e o ritual religioso da missa é inusitada somente se se desconsiderar justamente isso: que os processos ritualísticos são marcados pelo traço comum de provocar irrupção no tempo e no espaço das vidas cotidianas. Sobre isso, em texto anterior, cheguei a citar um trecho de um ensaio do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, quando falava que a temporalidade da festa, assim como a do jogo, e mesmo da festa religiosa, provocam a interrupção da temporalidade comum, ordinária, do trabalho cotidiano, criando a condição de possibilidade desse mesmo tempo comum, mas a partir de outros códigos sociais (Gadamer, 1985).
É nesse sentido que a “inversão carnavalesca”, do mesmo modo que ocorre no ritual religioso católico, suspende as ordens hierárquicas, provocando verdadeira suspensão não apenas da temporalidade, mas também da estrutura de poder normativa que o cotidiano estabelece. E isto está relacionado com aquela “anarquia legal” a qual se referia Karl Meuli: a permissão, dentro da própria ordem esperada, para que certa anomia, ou melhor, certa ausência de normas comuns possa surgir.
A expressão “anarquia legal” provoca uma ideia paradoxal. Afinal, como a legalidade poderia permitir mais do que a ilegalidade, uma própria situação sem lei, sem norma, anômica, e, mais, sem o princípio regente, criando uma falta de arché?
Em Iustitium (2003), o filósofo italiano Giorgio Agamben insiste em defender que haveria uma certa “solidariedade entre anomia e o direito”. Segundo diz, as festividades saturninas, no mundo antigo – conhecidas como Saturnálias –, bem como os carnavais medieval e moderno, são caracterizados “por permissividade desenfreada e pela suspensão e quebra das hierarquias jurídicas e sociais”.
Diz Giorgio Agamben que em diferentes épocas e culturas distintas: “Durante essas festas (…), os homens se fantasiam e se comportam como animais, os senhores servem os escravos, homens e mulheres trocam seus papéis e comportamentos delituosos são considerados lícitos ou, em todo caso, não passíveis de punição. Elas inauguram, portanto, um período de anomia que interrompe e, temporariamente, subverte, a ordem social.” (Agamben, 2004, p. 92).
A leitura que Giorgio Agamben faz desse tipo de festividade é a de que aquela “anarquia legal” sobre a qual falou Karl Meuli, trata-se, em verdade, de um modo de se evidenciar “sob a forma paródica, a anomia interna ao direito, o estado de emergência como pulsão anômica no próprio coração do nomos” (Meuli, 2021).
3.
Essa hipótese é interessante porque revela a potencialidade desativadora, ou melhor, profanadora do carnaval, quando cria um mundo lúdico, aparentemente fantasioso, mas que mostra algo que está posto na nossa realidade cotidiana: a de que as rígidas regras sociais, as quais criam distância entre seus agentes – ou a “evitação”, segundo diz Roberto DaMatta –, convivem, em paradoxo, com uma secreta solidariedade com a anomia, com a anarquia.
Por um momento no ano, durante o carnaval, a “brincadeira” é justamente a de mostrar que aquilo que separa as classes, aquilo que violentamente distingue as pessoas, aquilo que distingue até mesmo as raças, os gêneros, as sexualidades, culturas, seus gestos e costumes, ideologias e visões de mundo, quanto aos seus direitos e oportunidades, ao menos, não são “naturais”, ou melhor, não podem ser vistas de modo naturalizado.
Como as roupas de carnaval, essas fronteiras de distinções, de “evitação”, econômica, jurídica e social, de gênero, etc., são fantasiosas, fictícias, históricas e à espera de um rompimento possível – pois podem sempre ser de outra maneira.
É nesse sentido que podemos ler muitas das fantasias de carnaval no Brasil. Como é curioso notar a forte presença de um léxico monárquico, real, muitas vezes imperial, no mundo carnavalesco brasileiro. Dos nomes das escolas de samba – como, por exemplo, Império Serrano, Imperatriz Leopoldinense, no Rio de Janeiro, ou o Império do Samba Quem São Eles, em Belém –, ou mesmo nomes como o Rei Momo, a Rainha da Bateria, além daqueles que, como numa batalha medieval, portam as bandeiras de seus feudos, o carnaval brasileiro é marcado por uma verdadeira paródia da monarquia e dos rigores da hierarquia social que lhe estrutura.
A história da monarquia brasileira está ligada sem dúvida ao passado colonial da Coroa Portuguesa. Mas há um fato histórico importante de se destacar: o Brasil é um país que, dentro da história colonial mundial, foi por um tempo considerável a metrópole da sua própria Coroa colonizadora; e se isto já não fosse estranho o bastante, a independência dessa mesma colônia se deu com a assunção de um trono imperial pelo príncipe herdeiro da Coroa da qual se apartou.
Só por esses fatos históricos já se poderia falar em “paródia” sobre a própria ideia de monarquia. Porém, o que de fato não era nada “paródico”, no sentido de jocoso, ou satírico, era o modo como esse Império Brasileiro se sustentou economicamente: pela escravidão negra. Como modo de manter a violência do nómos colonial, o nómos imperial – tocado por um soberano também português, vale lembrar – estava associado a um liberalismo do Atlântico oitocentista, de caráter escravista.
E o que resta dessa história brasileira retorna na desigualdade social ainda presente e na incapacidade de se lidar com o racismo atualizado, com o genocídio indígena em curso, com a herança escravocrata e com a violência republicana realizada pelos golpes civis-militares.
Assim, o carnaval pode evidenciar não apenas a “anarquia legal” do poder e a fantasiosa ideia de se naturalizar as diferenças sociais no Brasil. A festividade carnavalesca é o feriado, cujo tempo, mesmo que curto, pode nos fazer lembrar da potencialidade de se tornar inoperante o princípio mandante – a arché – do poder em território brasileiro, ainda estruturado pela profunda desigualdade social, racial, pela violência de gênero, enfim, pela violência necropolítica (Mbembe, 2018) herdada da tomada de terra na nossa história colonial.
E o ato de parodiar esse princípio regente da sociedade brasileira é um dos instrumentos, dos meios, potencialmente emancipadores, revolucionários, do carnaval no Brasil. Usar da paródia profanadora contra a realidade violenta, sacralizada pelas classes opressoras no país. Colocar os corpos nas ruas, em “blocos”, parodiando com suas fantasias as figuras públicas que se levam muito a sério, é um ato que Giorgio Agamben chama, então, de “profanação”.
Mas o sentido de “profanar” aqui não dever ser lido como mero ato de dessacralização daquilo que era áureo, altivo, puro, original, correto e verdadeiro. “Profanar” pode ter o sentido de se dar um novo uso para o antigo modo de usar o poder e de estruturar a sociedade (Agamben, 2007). E um novo uso, capaz de lidar melhor com aquilo que a sacralização distinguiu, ou melhor, separou, como quando os brincantes de carnaval fazem entre o divino e o humano, santo e pecador etc., usando máscaras e roupas de seus personagens.
4.
Com essa noção de paródia, e levando em consideração o carnaval brasileiro, passo agora a levantar aqui uma hipótese, a partir dos textos de Karl Meuli e de Giorgio Agamben, sobre esse tipo de festejo anômico e anárquico que é o carnaval: quando os blocos de carnaval estão nas ruas, ou quando uma escola de samba desfila, cantando e dançando o enredo da música, em vez de se pensar como mera paródia de uma realidade mais verdadeira, o que se faz nessa evidenciação da “anarquia legal”, por meio da “inversão carnavalesca”, pode ser também o de se mostrar que a verdadeira paródia é aquela realidade sobre a qual se está parodiando.
E o carnaval no Brasil pode ser um exemplo disso: em vez da monarquia portuguesa e de seus descendentes no Brasil, travestidos de republicanos, a verdadeira “realeza” pode ser a do povo negro que samba com beleza e graça; a dos amigos que se encontram por acaso no bloquinho de carnaval, e que se abraçam e festejam a vida – sobrevivente de uma pandemia; e o desejo, reprimido pela sociedade misógina e homofóbica, que se realiza num beijo consentido, assim, dado no meio da rua.
Por outro lado, também não gostaria de romantizar muito o carnaval brasileiro. É claro que não podemos nos esquecer que a festa de fevereiro também está capturada pelos dispositivos de poder e de controle, pela violência e pela economia capitalista neoliberal. Trata-se de uma festa que também gera renda, votos, mídia, e também poder e violência nos seus espaços públicos e privados.
Mas o carnaval pode sempre ser mais do que isso: poder ser um grande ato de performance transformadora, um modo desses corpos nas ruas estarem em aliança (Butler, 2018), manifestando seus desejos e insatisfações políticas, de modo que festejar e protestar estejam num limiar, no qual que já não sabemos mesmo se estamos brincando, profanando ou cometendo um ato revolucionário.
Enfim, o que não podemos mesmo nos esquecer é de que, para além da revelação da “anarquia legal” e do potencial “inversivo”, político-assembleiano e até revolucionário, podemos nos divertir, usar máscaras, não para escondermos quem somos ou fomos, mas para sermos quem queremos e podemos ser.
Enfim, com isso, o carnaval é o momento mesmo de preparo para a Quaresma, mas não necessariamente de contrição moralista e melancolizada. O carnaval poder ser a performance do gesto da alegria, de festejo, do milagre contra um presente cotidiano, escasso e opressor – vale lembrar, aqui, do primeiro milagre de Cristo, realizado numa festa.
A festa do carnaval, que termina no início da Quaresma, pode ser, então, a temporalidade que nos prepara para uma nova vida, para a passagem – a Páscoa –, aquela capaz de fazer a ressureição dos nossos corpos, depois que conseguirmos frenar o poder que freia nossas potencialidades transformadoras, revolucionárias, evidenciando que o núcleo do poder está vazio, anômico e anárquico.
*Ricardo Evandro S. Martins é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Iustitium: Estado de exceção. Traduzido por Iraci D. Poleti. São Paulo: Editora Boitempo, 2004.
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
DaMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
MBEMBE, Achile. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MEULI, Karl. L’originale del Carnevale. In: Gli deli incatenati: e altri saggi. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2021.
GADAMER, Hans-Georg. A atualidade do belo: A arte como jogo, símbolo e festa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
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Imagem: Tomaz Silva/ Agência Brasil |
1.
Com o auxílio da pesquisa etimológica, o filólogo suíço Karl Meuli publicou em uma de suas obras colecionadas, em 1971, um ensaio sobre a origem do carnaval. Trata-se de uma conferência de 1963, de nome “A origem do carnaval”, em que Karl Meuli faz um interessante estudo sobre o tema. Segundo diz Karl Meuli, a palavra carnaval deriva da palavra italiana carnavale, mas explicações linguísticas, mitológicas e etimológicas são ainda mais amplas e diversas.
Karl Meuli lembra que já se pensou que “carnaval” derivaria ou do carus navalis (carruagem naval),do deus grego Dionísio em Atenas, ou até mesmo do navio da deusa egípcia Ísis. Mas para o etimólogo suíço, foram Merlo e Wartburg os linguistas quem demonstraram de modo irrefutável “(..) que a palavra [carnaval] se refere ao início dos quarenta dias de jejum, não no sentido de carne, vale!, – Carne, adeus! –, mas no sentido de carnem levare, ‘trazer, retirar a carne da mesa’ (Roma, século XIII: carnelevarium; Milão, século XIV: carnelevamen)” (Meuli, 2021, p. 1114).
O sentido de “retirar a carne da mesa” é o de justamente se preparar para se receber o Corpo de Cristo, nos quarenta dias que antecedem a Páscoa cristã, a semana da via crucis de Cristo, de sua morte e de sua ressurreição. Segundo diz Karl Meuli, no século XIII, a Igreja inaugurou a solenidade da Quaresma: “os prazeres da carne devem cessar”. E isto significou uma mudança de hábitos na Europa. Conforme diz o filólogo, desde o Concílio de Benevento, as festas, com suas exuberantes máscaras, de tradições muito mais antigas que a própria Igreja, até eram toleradas, mas deveriam se encerrar na quarta-feira de cinzas.
Essa tradição segue em curso, mesmo em um país que já não é mais colônia da Europa, como o Brasil. O carnaval, aqui, deve se encerrar no início da Quaresma. Mesmo em tempos republicanos, supostamente secularizados, o carnaval brasileiro respeita a medieval determinação da Igreja. Sobre esses temas, vou me delimitar nesse ensaio a falar de um ponto mais específico, sobre o qual Karl Meuli acabou por mencionar mais de uma vez no seu referido ensaio sobre a origem do carnaval: sobre como a festa do carnaval, seus adereços, máscaras, seus excessos, provocam o que ele chamou de “anarquia legal” (Meuli, 2021, p. 1241).
A ideia de que as normas sociais ficam suspensas temporariamente, produzindo, com isto, uma troca de papéis sociais, de posturas – permitindo, inclusive, o trânsito entre o que entendemos por humano e animal, homem e mulher, reis e súditos – talvez não seja algo desconhecido e novo para as discussões sociológicas e antropológicas em torno da festividade do carnaval no Brasil.
2.
Em 1990, no seu Carnavais, malandros e heróis, o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta chamou essa ideia de “inversão”, ou então de “inversão carnavalesca”, quando se junta “o que está normalmente separado”:
“É precisamente isso que parece ocorrer em momentos como o do carnaval brasileiro, quando o uso das fantasias permite relacionar ao núcleo (ou centro do sistema social) toda uma legião de seres, papéis sociais e categorias que, no curso da vida diária, estão escondidos e marginalizados” (DaMatta, p. 84).
Lembrando de Radcliff-Brown, Roberto DaMatta compara a inversão carnavalesca com os rituais religiosos, justamente porque esses são rituais que lidam com a dialética entre a “evitação” de agentes separados socialmente e a “inversão” dessa separação, a qual gera efeitos conjuntivos e disjuntivos entre estes mesmos agentes. A fim de realizar “a comunicação entre agentes da relação por vias normais”, as relações carnavalescas são invertidas, interrompendo temporariamente aquelas regras que “evitam” o contato entre aqueles e aquelas que estão separados por diversos tipos de regras.
Para Roberto DaMatta, citando Lévi-Strauss, isso ocorre analogamente ao ritual religioso católico da missa, quando, como, por exemplo, a ordem estabelecida, que gera evitação entre seus agentes, é invertida: “Deus desce até os homens; os homens sobem até Deus; objetos sagrados são incorporados aos fiéis; há um local apropriado para a confusão de categorias etc.” (DaMatta, 2012, p. 87).
A analogia entre carnaval e o ritual religioso da missa é inusitada somente se se desconsiderar justamente isso: que os processos ritualísticos são marcados pelo traço comum de provocar irrupção no tempo e no espaço das vidas cotidianas. Sobre isso, em texto anterior, cheguei a citar um trecho de um ensaio do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, quando falava que a temporalidade da festa, assim como a do jogo, e mesmo da festa religiosa, provocam a interrupção da temporalidade comum, ordinária, do trabalho cotidiano, criando a condição de possibilidade desse mesmo tempo comum, mas a partir de outros códigos sociais (Gadamer, 1985).
É nesse sentido que a “inversão carnavalesca”, do mesmo modo que ocorre no ritual religioso católico, suspende as ordens hierárquicas, provocando verdadeira suspensão não apenas da temporalidade, mas também da estrutura de poder normativa que o cotidiano estabelece. E isto está relacionado com aquela “anarquia legal” a qual se referia Karl Meuli: a permissão, dentro da própria ordem esperada, para que certa anomia, ou melhor, certa ausência de normas comuns possa surgir.
A expressão “anarquia legal” provoca uma ideia paradoxal. Afinal, como a legalidade poderia permitir mais do que a ilegalidade, uma própria situação sem lei, sem norma, anômica, e, mais, sem o princípio regente, criando uma falta de arché?
Em Iustitium (2003), o filósofo italiano Giorgio Agamben insiste em defender que haveria uma certa “solidariedade entre anomia e o direito”. Segundo diz, as festividades saturninas, no mundo antigo – conhecidas como Saturnálias –, bem como os carnavais medieval e moderno, são caracterizados “por permissividade desenfreada e pela suspensão e quebra das hierarquias jurídicas e sociais”.
Diz Giorgio Agamben que em diferentes épocas e culturas distintas: “Durante essas festas (…), os homens se fantasiam e se comportam como animais, os senhores servem os escravos, homens e mulheres trocam seus papéis e comportamentos delituosos são considerados lícitos ou, em todo caso, não passíveis de punição. Elas inauguram, portanto, um período de anomia que interrompe e, temporariamente, subverte, a ordem social.” (Agamben, 2004, p. 92).
A leitura que Giorgio Agamben faz desse tipo de festividade é a de que aquela “anarquia legal” sobre a qual falou Karl Meuli, trata-se, em verdade, de um modo de se evidenciar “sob a forma paródica, a anomia interna ao direito, o estado de emergência como pulsão anômica no próprio coração do nomos” (Meuli, 2021).
3.
Essa hipótese é interessante porque revela a potencialidade desativadora, ou melhor, profanadora do carnaval, quando cria um mundo lúdico, aparentemente fantasioso, mas que mostra algo que está posto na nossa realidade cotidiana: a de que as rígidas regras sociais, as quais criam distância entre seus agentes – ou a “evitação”, segundo diz Roberto DaMatta –, convivem, em paradoxo, com uma secreta solidariedade com a anomia, com a anarquia.
Por um momento no ano, durante o carnaval, a “brincadeira” é justamente a de mostrar que aquilo que separa as classes, aquilo que violentamente distingue as pessoas, aquilo que distingue até mesmo as raças, os gêneros, as sexualidades, culturas, seus gestos e costumes, ideologias e visões de mundo, quanto aos seus direitos e oportunidades, ao menos, não são “naturais”, ou melhor, não podem ser vistas de modo naturalizado.
Como as roupas de carnaval, essas fronteiras de distinções, de “evitação”, econômica, jurídica e social, de gênero, etc., são fantasiosas, fictícias, históricas e à espera de um rompimento possível – pois podem sempre ser de outra maneira.
É nesse sentido que podemos ler muitas das fantasias de carnaval no Brasil. Como é curioso notar a forte presença de um léxico monárquico, real, muitas vezes imperial, no mundo carnavalesco brasileiro. Dos nomes das escolas de samba – como, por exemplo, Império Serrano, Imperatriz Leopoldinense, no Rio de Janeiro, ou o Império do Samba Quem São Eles, em Belém –, ou mesmo nomes como o Rei Momo, a Rainha da Bateria, além daqueles que, como numa batalha medieval, portam as bandeiras de seus feudos, o carnaval brasileiro é marcado por uma verdadeira paródia da monarquia e dos rigores da hierarquia social que lhe estrutura.
A história da monarquia brasileira está ligada sem dúvida ao passado colonial da Coroa Portuguesa. Mas há um fato histórico importante de se destacar: o Brasil é um país que, dentro da história colonial mundial, foi por um tempo considerável a metrópole da sua própria Coroa colonizadora; e se isto já não fosse estranho o bastante, a independência dessa mesma colônia se deu com a assunção de um trono imperial pelo príncipe herdeiro da Coroa da qual se apartou.
Só por esses fatos históricos já se poderia falar em “paródia” sobre a própria ideia de monarquia. Porém, o que de fato não era nada “paródico”, no sentido de jocoso, ou satírico, era o modo como esse Império Brasileiro se sustentou economicamente: pela escravidão negra. Como modo de manter a violência do nómos colonial, o nómos imperial – tocado por um soberano também português, vale lembrar – estava associado a um liberalismo do Atlântico oitocentista, de caráter escravista.
E o que resta dessa história brasileira retorna na desigualdade social ainda presente e na incapacidade de se lidar com o racismo atualizado, com o genocídio indígena em curso, com a herança escravocrata e com a violência republicana realizada pelos golpes civis-militares.
Assim, o carnaval pode evidenciar não apenas a “anarquia legal” do poder e a fantasiosa ideia de se naturalizar as diferenças sociais no Brasil. A festividade carnavalesca é o feriado, cujo tempo, mesmo que curto, pode nos fazer lembrar da potencialidade de se tornar inoperante o princípio mandante – a arché – do poder em território brasileiro, ainda estruturado pela profunda desigualdade social, racial, pela violência de gênero, enfim, pela violência necropolítica (Mbembe, 2018) herdada da tomada de terra na nossa história colonial.
E o ato de parodiar esse princípio regente da sociedade brasileira é um dos instrumentos, dos meios, potencialmente emancipadores, revolucionários, do carnaval no Brasil. Usar da paródia profanadora contra a realidade violenta, sacralizada pelas classes opressoras no país. Colocar os corpos nas ruas, em “blocos”, parodiando com suas fantasias as figuras públicas que se levam muito a sério, é um ato que Giorgio Agamben chama, então, de “profanação”.
Mas o sentido de “profanar” aqui não dever ser lido como mero ato de dessacralização daquilo que era áureo, altivo, puro, original, correto e verdadeiro. “Profanar” pode ter o sentido de se dar um novo uso para o antigo modo de usar o poder e de estruturar a sociedade (Agamben, 2007). E um novo uso, capaz de lidar melhor com aquilo que a sacralização distinguiu, ou melhor, separou, como quando os brincantes de carnaval fazem entre o divino e o humano, santo e pecador etc., usando máscaras e roupas de seus personagens.
4.
Com essa noção de paródia, e levando em consideração o carnaval brasileiro, passo agora a levantar aqui uma hipótese, a partir dos textos de Karl Meuli e de Giorgio Agamben, sobre esse tipo de festejo anômico e anárquico que é o carnaval: quando os blocos de carnaval estão nas ruas, ou quando uma escola de samba desfila, cantando e dançando o enredo da música, em vez de se pensar como mera paródia de uma realidade mais verdadeira, o que se faz nessa evidenciação da “anarquia legal”, por meio da “inversão carnavalesca”, pode ser também o de se mostrar que a verdadeira paródia é aquela realidade sobre a qual se está parodiando.
E o carnaval no Brasil pode ser um exemplo disso: em vez da monarquia portuguesa e de seus descendentes no Brasil, travestidos de republicanos, a verdadeira “realeza” pode ser a do povo negro que samba com beleza e graça; a dos amigos que se encontram por acaso no bloquinho de carnaval, e que se abraçam e festejam a vida – sobrevivente de uma pandemia; e o desejo, reprimido pela sociedade misógina e homofóbica, que se realiza num beijo consentido, assim, dado no meio da rua.
Por outro lado, também não gostaria de romantizar muito o carnaval brasileiro. É claro que não podemos nos esquecer que a festa de fevereiro também está capturada pelos dispositivos de poder e de controle, pela violência e pela economia capitalista neoliberal. Trata-se de uma festa que também gera renda, votos, mídia, e também poder e violência nos seus espaços públicos e privados.
Mas o carnaval pode sempre ser mais do que isso: poder ser um grande ato de performance transformadora, um modo desses corpos nas ruas estarem em aliança (Butler, 2018), manifestando seus desejos e insatisfações políticas, de modo que festejar e protestar estejam num limiar, no qual que já não sabemos mesmo se estamos brincando, profanando ou cometendo um ato revolucionário.
Enfim, o que não podemos mesmo nos esquecer é de que, para além da revelação da “anarquia legal” e do potencial “inversivo”, político-assembleiano e até revolucionário, podemos nos divertir, usar máscaras, não para escondermos quem somos ou fomos, mas para sermos quem queremos e podemos ser.
Enfim, com isso, o carnaval é o momento mesmo de preparo para a Quaresma, mas não necessariamente de contrição moralista e melancolizada. O carnaval poder ser a performance do gesto da alegria, de festejo, do milagre contra um presente cotidiano, escasso e opressor – vale lembrar, aqui, do primeiro milagre de Cristo, realizado numa festa.
A festa do carnaval, que termina no início da Quaresma, pode ser, então, a temporalidade que nos prepara para uma nova vida, para a passagem – a Páscoa –, aquela capaz de fazer a ressureição dos nossos corpos, depois que conseguirmos frenar o poder que freia nossas potencialidades transformadoras, revolucionárias, evidenciando que o núcleo do poder está vazio, anômico e anárquico.
*Ricardo Evandro S. Martins é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Iustitium: Estado de exceção. Traduzido por Iraci D. Poleti. São Paulo: Editora Boitempo, 2004.
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
DaMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
MBEMBE, Achile. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MEULI, Karl. L’originale del Carnevale. In: Gli deli incatenati: e altri saggi. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2021.
GADAMER, Hans-Georg. A atualidade do belo: A arte como jogo, símbolo e festa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
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