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Padura: “Minha Cuba à flor da pele”

Escritor desvela os dilemas do socialismo caribenho em novo livro. De esquerda crítica, retrata o submundo de Havana, desilusões de sua geração e o transe pós-Fidel. Avesso a “análises de conjuntura”, vê no cotidiano a chave do mundo


De OUTRASPALAVRAS, 10 de Maio 2024



Foto: Adalberto Roque / AFP

— Vou começar pela grande protagonista de seus romances: Havana. Como é viver nesta cidade? O que te encanta? O que te assombra? O que te inspira?

— Sou um romancista de Havana e a cidade me dá tudo o que preciso para escrever: histórias, personagens, atmosfera, contexto, inclusive uma maneira de ver a vida e expressá-la verbalmente, literariamente — explica Leonardo Padura, 68 anos, o aclamado escritor cubano da tetralogia As quatro estações e de O homem que amava os cachorros, que José Padilha e Wagner Moura planejam verter para o cinema.

Apesar de charlarmos por e-mail, eu poderia dizer que é possível sentir no ecoar digital de suas palavras a brisa leste do Caribe — úmida, salgada e nostálgica — numa Havana de vielas históricas, casarões-cortiços, paladares… Da Praça da Revolução com Camilo Cienfuegos e Che Guevara rascunhados em empenas, de turistas europeus em tuk-tuk, da salsa, do merengue e até de reggaeton (que Padura detesta!) torando em caixas de som… Vã imaginação.

Padura prossegue:

— Sempre sinto que ela é uma cidade com a alma à flor da pele, que se você a conhece e a interroga, ela fala. E tudo isso é fonte de inspiração. Mas às vezes me assusta sentir que ela vai se transformando com o tempo, e nem sempre para melhor. Há um processo de empobrecimento que se reflete não apenas na deterioração de sua estrutura física, mas também na deterioração de seus habitantes. E a pobreza, por essência, é feia, agressiva, dilacerante.

A Havana de Padura nunca foi mágica, mas melancólica e atroz. Uma teia de relações intrincadas que escapa ao romantismo revolucionário ou à propaganda gusana de Miami. É uma cidade incompleta para muitos que lá vivem — e um pedaço insubstituível para aqueles que se desterraram.

Esta, portanto, é a Havana dos romances de Padura. Porém, em Pessoas Decentes, seu novo livro publicado pela Editora Boitempo, ela torna-se mais insólita. É 2016. Mick Jagger berra um “Boa noite, meu povo de Cuba” ao microfone, antes de requebrar com os Rolling Stones num gigantesco show que fez 1,2 milhão de cubanos espremerem-se nas ruas da capital. É o ano em que mister Barack Obama, o primeiro presidente estadunidense a pisar na Ilha, sugere perante a Raúl Castro que é tempo “de pensar num futuro juntos” e, num espanhol-yankee, diz com ares triunfalista: “Eu creio no povo cubano”. É o ano em que a Chanel levou a luxuosidade francesa à Cuba socialista, armando sua passarela em pleno El Paseo del Prado, um dos maiores cartões-postais de Havana, para receber a nata do mundo da moda, com desfile de Tilda Swinton, Vin Diesel e Gisele Bündchen, entre outros. (E, também, da morte de Fidel Castro aos 90 anos, cujas cinzas foram depositadas no Memorial José Martí, em Santiago de Cuba, cercado por uma multidão que fazia filas num raio de três quilômetros para prestar-lhe homenagens — e apoiar seu mantra “sim, é possível”, tanto para construir um futuro mais justo no mundo quanto para superar a crise cubana).

O cronista-gonzo Xico Sá, fãzão de Padura, sublinhou na orelha do livro um trecho-síntese desta estranha euforia:

“Obama vem aí, cavalheiros!”, gritou alguém. “E, com Obama, um monte de estrangeiros com dólares, a moeda do inimigo da qual as pessoas tanto gostam, que resolve tantos problemas. Vamos abrir negócios, vamos dar a volta ao mundo, e talvez até suspendam o bloqueio e, com isso, consigamos sair de uma vez por todas do subdesenvolvimento e até do Terceiro Mundo. Havana está louca, Havana está sonhando.”

E, como uma cidade que sonha é, também, uma cidade que deve recordar, Padura assim o faz em Mantilla, bairro periférico que é mais um ecótono entre a paisagem urbana e rural, cortada por uma rodovia movimentada. Ali o escritor nasceu, criou-se e fincou raízes, assim como seu pai, seu avô e seu bisavô, que lá abriu um armazém, construiu uma casa e nunca mais saiu, tal como seus descendentes. Considera-se, portanto, mais mantillense que havanês.

Padura mora, hoje, com sua companheira Lucía López Coll, a quem dedica todos os seus livros “com amor e miséria”, na mesma casa de sua infância, erguida tijolo a tijolo pelas mãos do viejo bisavô Padura em 1954. Não têm filhos. Mas têm um calhambeque, privilégio na Ilha, e livros, e mais livros, e centenas de filmes e séries num HD que preenche a monotonia das noites mantillenses deste casal de cinéfilos.

Feitiço incondicional


Bolotas de pano com esparadrapo. Pedaços de madeira. E assim fazia-se a pelada beisebolista, com pequenos pitchers e os catchers do bairro. Como muitas crianças da Ilha, o sonho do niño Leonardo era ser jogador de beisebol, esporte que é a paixão nacional em Cuba. O escritor autoproclama-se um dos maiores conhecedores nesta matéria em Cuba — acredito, pois um nativo do País do Futebol dificilmente poderia pôr à prova sua expertise.

Isso, talvez, tenha marcado mais sua infância do que o terremoto político que abalou a América Latina, cujo epicentro era Cuba. Barbudos tenazes tomaram Havana e botaram o ditador Fulgencio Batista para correr, após dois anos de guerrilha. Era o primeiro dia de 1959, época de renovação de votos, e uma pomba branca — não é metáfora! — pousava insolitamente no ombro do destemido Fidel Castro. Um bom agouro para o ano novo cubano.

Desta época, quando a revolução engatinhava, Padura tem recordações vagas. Descreve uma cidade glamourosa, “cheia de um comércio vívido e colorido”, que apagou-se na época natalina: os costumeiros passeios pelo centro, onde a classe baixa ia para admirar de fora as reluzentes vitrines de lojas chiques e seus enfeites de Papai Noel, pinheiros ornamentados e neve falsa, não era uma prioridade para um governo que tinha a árdua tarefa de reconstruir um país.

Mas Padura rememora isso sem ressentimento, com uma pitada de saudosismo, vá lá, mas, em suma, sem ressentimento. A cidade continua glamourosa, bela e enfeitiçadora, até quando se deteriora, repete o escritor, sempre quando estrangeiros incrédulos querem saber por que ele ainda não se “autoexilou”… Abandonar Cuba, ao final, seria abandonar matérias-primas essenciais — e exilar-se dele mesmo. Por isso, quando vai aos Estados Unidos e encontra familiares e amigos, confessa que procura somente se divertir, evitando discutir política, pois “de fora as coisas cubanas são muitas vezes vistas em termos bastante preto e branco”.

O maratonista


A literatura é uma forma de vida, diz Padura. Porém, sem arroubo poético. É vida, pois é o ofício de onde tira o ordenado para pagar os boletos — um privilégio em qualquer parte do mundo, reconhece. Também é vida, afiança o escritor, pois abre portas para outros mundos. De novo, não é metáfora desgastada; é algo concreto. A carreira literária permite a Padura viajar para muitos países. Conhecer gente nova. Ouvir e ser ouvido em realidades tão díspares. Ir ao além-Cuba. Ele nunca imaginou que aquele jovem Leonardo do Período Especial cubano, um jornalista que revezava-se entre a cobertura policial e a crítica cultural, o mesmo Leonardo de quando lançou seu primeiro livro — Passado perfeito, ressuscitado após jazer por seis anos numa gaveta — por uma pequena editora mexicana, tornar-se-ia uma estrela da literatura mundial, autor do best-seller O Homem que Amava os Cachorros, com obras traduzidas para mais de 15 idiomas, vencedor de importantes prêmios, como o Princesa de Asturias, o Hammett e o Prix Initiales, e laureado com o diploma de doutor honoris causa pela Universidade Nacional Autônoma do México.

Aconteceu. E grande notoriedade exige grande responsabilidade, pois o romance é uma corrida de fundo, acredita Padura. Sentar-se todo dia em frente ao computador para escrever por cinco, seis horas, ou mais quando a imaterial (e imprevisível) inspiração bate, como faz hoje, exige condicionamento mental… e físico — tal como um enxadrista profissional, explica. Exercita-se, portanto, todos os dias. Abandonou o rum: bebe apenas vinho, e somente quando se reúne com amigos. Esforça-se para fumar menos de dez cigarros por dia. E, como um bom cubano, tem como praxe caminhar pelo Malecón, a orla de Havana, por horas ou mesmo cinco minutos, e sentar-se na mureta de 1 metro para contemplar a cidade, inescapável, de um lado, e o inalcançável oceano, de outro. Onde começa e termina o país, um lugar que é a síntese de Cuba, sempre destaca.

Apesar de calejado no ofício, adverte que cada romance é uma nova experiência. De novo, diz isso com pragmatismo, pois as últimas obras de Padura debruçam-se sobre eventos e personagens históricos — do século XIX ao XXI — e exige ampla pesquisa. O que realmente o corrói, admite, é o fantasma da autocrítica rondando cada página de seus manuscritos: é preciso afinar o estilo, a estrutura, o tom de certas passagens, e contar com imprescindíveis pitacos críticos de sua companheira… “Você está escrevendo merda e acha que é um gênio”, já disse. “É aí que você está ferrado”.

— Alguns dizem que a função da literatura é captar as mudanças imperceptíveis de uma época — preâmbulo eu, querendo saber qual sentido Padura vê nesta batalha contra a página em branco. — Antonio Candido disse que ela é uma necessidade humana básica: o direito à fabulação. Outros sustentam que sua importância é justamente não ter função alguma. E assim sucessivamente… E para você, qual a função da literatura?

— Da literatura em geral, é para criar beleza, para descobrir o que os outros não veem, para nos fazer pensar. Do romance, em particular, é mergulhar na alma dos indivíduos, na condição humana e, nessa perspectiva, dar-nos uma imagem de uma realidade, real ou fictícia, mas que amplia a nossa percepção do mundo.

— Alguns escritores confessam que, no processo de escrita, certos personagens parecem ganhar autonomia, escapar do controle do escritor, tomar seus próprios caminhos… Acontece isso com você?

— Claro… Mario Conde [protagonista da maior parte de seus romances] muitas vezes faz o que lhe dá vontade, sem minha permissão. Ou em Como poeira no vento (Boitempo, 2021), esses personagens começaram a crescer e a atuar de forma quase independente das minhas ideias originais. Acredito que quando se dá vida a uma criatura, pode-se educá-la, mas não decidir completamente os seus comportamentos. Isso acontece na vida real e, também, no romance.

Talvez em falsa modéstia, ele costuma dizer em outras entrevistas que é um escritor de “pouca imaginação”, pois custa-lhe ter uma ideia para um romance, o que o exaspera. Mas diz que sempre há uma luz no fim do túnel – e, em algum ponto do cérebro, uma luz se acende.

A criatura não muito bem-educada


Mario Conde é contemporâneo de Padura do Período Especial cubano, quando o colapso da União Soviética levou seu “satélite” latino-americano a uma gravíssima crise econômica — apagões, insegurança, mercado clandestino, êxodo… — que ainda não se cicatrizou muito bem. Os dois viveram poucas e boas juntos, portanto, Conde é criatura, sim, é verdade, mas também é um camarada fiel ao longo de décadas e mais de uma dezena de romances, comungando os dois dos mesmos dilemas existenciais. Conde é um detetive cubano encouraçado pelo humor pessimista, um tabagista inveterado que bafora profunda melancolia. Ressalta seu criador-camarada que Conde tem uma personalidade destonante da alma cubana, que é despreocupada, de viver um dia de cada vez, sin coger lucha, como se diz por lá.

Conde nunca quis ser policial, para começo de conversa. Fã de jazz e de Ernest Hemingway, sonhava ser um escritor — e, por isso, é afeito ao submundo havanês, nutrindo certa simpatia com as putas, os loucos e os bêbados. Tem a mesma idade de Padura e é atormentado por fantasmas do passado. Em Pessoas Decentes, ele é um homem ainda mais ressentido, que sobrevive de bicos e da venda de livros velhos, mas volta à ativa na Cuba de Rolling Stones e Obama a convite de um ex-colega policial, após o assassinato brutal de um burocrata hijo de puta de primeiro escalão que destruiu a vida e a carreira de vários artistas.

— Foi difícil desaposentar o detetive Mario Conde? — pergunto.

— Eu nunca o apaguei! — aponta Padura. — Pelo contrário, venho reforçando as suas características e, inclusive, acrescentando outras que o complementam, por exemplo, a sua percepção da passagem do tempo físico, humano, o que chamamos de envelhecimento. No início da série ele tinha 35 anos, agora tem 62 em Pessoas Decentes e, com esse processo temporal, tornou-se mais cético, mais irônico, mais desencantado, mais pessimista. Mas tudo isso estava se gestando desde que o esbocei pela primeira vez. A grande mudança foi deixar de ser policial, mas agora continua fazendo investigações policiais e sempre, antes e agora, dando um diagnóstico da realidade cubana.

— Muitos meios de comunicação e críticos literários especulam se personagens de ficção são alter egos de seus escritores. Você é Mario Conde? Tem algo dele?

— Mario Conde é Mario Conde e eu sou eu. Nada de alter ego. É claro, ele é meus olhos para ver a realidade, minha sensibilidade para assumi-la. Somos cubanos da mesma geração, com experiências comuns, com inclinações para a literatura, amantes da contemplação da beleza feminina, mas cada um à sua maneira… embora sejamos muito parecidos.

Detetive da Havana profunda


Vamos, então, ao berço de Conde, criado em frente a uma Olivetti — ou Mignon, Hermes, Remington, sei lá… O casmurro detetive fez-se vida a partir da pretensão de Padura em escrever romances policiais que seriam, sobretudo, romances sociais. Um Sam Spade caribenho! Um Philip Marlowe do submundo socialista. Nos anos 70 e 80, havia uma produção profícua deste gênero literário em Cuba, estimulada pelo governo. Mas era aquela velha coisa das pulp fiction estadunidenses: um detetive-herói, mas com o “comprometimento revolucionário”.

Conde não é propriamente um anti-herói, observa Padura, mas um protagonista carrancudo em conflito consigo mesmo e com a sociedade cubana, um malparido que lida com malparidos e que personifica as desilusões de uma geração — a geração de Padura. Algo que o jornalismo oficialista cubano nunca poderia fazer, afirma o escritor, em diversas entrevista.

Nos anos 80, o ganha-pão de Padura era o jornalismo — e ele sofria em espremer histórias em três mil toques: a experiência humana da realidade, acredita ainda, ao menos para o então aspirante a romancista, não poderia ter uma camisa de força de caracteres. Ele escrevia para o Juventud Rebelde, jornal oficial da ala juvenil do Partido Comunista de Cuba, e para a revista literária El Caimán Barbudo. Era a “mídia jovem” cubana que, ao contrário do Granma, o “órgão oficial” do Partido, podia ocasionalmente contar histórias mais ousadas, como a do aumento da prostituição na década de 1990 e da “dinastia do rum Bacardi”. Por fim, Padura foi chefe de redação da Gaceta de Cuba, revista de la Unión de Escritores, quando abandonou o jornalismo para dedicar-se somente à literatura.

Ficou, então, algo de jornalista nele na busca de investigar as complexidades da sociedade cubana, o que as mídias oficialistas nunca poderiam fazer, porém sem perseguir o ritmo frenético, caliente, dos acontecimentos.

— Você foi jornalista por um tempo. Peço licença para propor uma situação imaginária: se você fosse entrevistar o detetive Conde de Pessoas Decentes, qual seria a primeira pergunta?

— Essa é fácil: nesta Cuba onde você mora agora… de que adianta ser uma pessoa decente?… É que quando a sobrevivência se impõe, a ética nem sempre sai bem no embate.

Parece meio pessimista, não acha?

Lendo inúmeras entrevistas que o escritor concedeu nos últimos dez anos, sei que Padura nunca romantizou a passagem do tempo; as primaveras em nada são generosas. Ele gosta de lembrar, como se precisasse pelear contra o clichê de que mechas brancas seriam provedoras de sabedoria, que o corpo definha, a memória fraqueja, o cansaço cambaleia o corpo, a visão fica turva. E isso nem é o pior. A auréola da nostalgia pesa sobre a cabeça. As expectativas de que tudo vai se ajeitar desmoronam. Não, não vai. E a crença de um futuro melhor se esvai. Talvez até haja pessoas decentes no mundo. Mas a sensação é de que “algo que se acaba, de um tempo que não se pode recuperar, que se repete e que sempre termina nos esmagando”, disse certa vez. “Você se sente derrotado pela História como acontece com Conde e com muitos de sua geração”.

Em O Homem que Amava os Cães, Padura escreve que “a Utopia foi traída e, pior ainda, reduzida a uma fraude aos maiores desejos humanos”.

Por isso, insisto.

— Você é uma pessoa otimista? Ou acredita que este sentimento humano é perecível com o passar do tempo?

E cavuco mais:

— Há espaço, hoje em dia, para as utopias?

— Passo do otimismo ao pessimismo com muita facilidade, embora às vezes fique preso no pessimismo por mais tempo — quem fala isso, só pode ser um verdadeiro pessimista, claro. — Acredito que a sociedade humana avançou muito em muitas áreas, a ciência, por exemplo, mas acredito ao mesmo tempo, que muitos outros valores foram vulgarizados ou se perderam definitivamente. E não vejo espaço para a promoção de novas utopias, mas sim de distopias.

E prossegue:

— Quem me dera que houvesse um pensamento que organizasse melhor o presente e, inclusive, o futuro, mas vejo ao meu redor cada vez mais ameaças à democracia, desde a Rússia de Putin até os Estados Unidos de Trump, não importa se ele é presidente ou não, passando por uma Europa que se volta à direita e, mais perto, do El Salvador de Bukele ou da própria Cuba de hoje, onde os direitos de expressão, de descontentamento e de dissidência são violados. Nós estamos fodidos!

Sim, don Padura. Convém, então, discutirmos mais sobre Literatura? Ou…
Seria melhor falarmos de beisebol?

Cuba é uma ditadura, mister Padura? Qual a solução aos mais de 60 anos de embargo econômico? O senhor acredita que o comunismo fracassou? E a Venezuela? E a China e Putin? Qual o painel socioeconômico da Olha após a morte de Fidel Castro? Miguel Díaz-Canel está cedendo ao neoliberalismo?

Ele é educado ao responder perguntas como essas, mas pinça palavras – e muito poucas – para não deixar entrevistadores no vácuo. Brinca que sempre que está em turnê no exterior “as pessoas vêm até mim e me dizem não o quão bem escrevo, mas o quão corajoso sou para escrever o que escrevo em Cuba”.

Não é que Padura não goste de falar de política, mas isso não é algo fácil para qualquer cubano, escritores ou não, que são sempre fustigados a se posicionarem contra ou a favor do socialismo caribenho. Em uma entrevista de meia hora, queixa-se, passa 25 minutos respondendo perguntas políticas. Mas ele adoraria falar, também, de literatura, música, cinema, esportes, o beisebol que tanto ama… — como um escritor normal. Ninguém coloca Paul Auster nesta sinuca de bico, suspirou em um de seus ensaios: “Auster nunca é interrogado sobre a possível direção que a economia americana está tomando” ou “por que ele continuou vivendo em seu país durante o anos horríveis do governo George W. Bush”.

Não sou especialista em análises de conjuntura política, murmurou certa vez, “vou dar respostas que poderiam ser obtidas com qualquer outra pessoa”, mas, quando perguntado sobre literatura, “todas as minhas respostas podem ter leituras políticas”.

Padura está longe de ser gusano, que fique claro, como más-línguas poderiam sugerir. É mais um crítico, sem a obrigatoriedade de ser construtivo. Ao longo das décadas, perdeu o viço para analisar por conta própria ou ser arguido por terceiros sobre a política institucional cubana. É verdade que ele sempre reitera que falta uma absoluta liberdade de expressão na Ilha, embora nunca tenha sido censurado ou molestado por burocratas — e nem considere que houve “excessos” em Cuba, como ocorreram na URSS. Mas aponta que o projeto de criação do novo homem socialista castrou subjetividades, pois jovens como ele não podiam cultivar uma cabeleira, usar calças apertadas, curtir o som dos Beatles ou ler certos autores “malditos”. É gozado. Ele nunca militou em causa alguma, menos ainda no Partido, porém um novo livro de Padura é sempre tomado como um documento para destrinçar a realidade cubana – seja em maior ou menor grau, à direito ou esquerda.
Nem ao céu nem ao inferno

Padura é direito, como sempre: Cuba não é uma ditadura sanguinária nem um romântico paraíso socialista. É, mais bem, um “purgatório” — palavra dele. Um lusco-fusco, caso queiramos corromper com otimismo a imagem católica evocada pelo escritor.

Purgatório ou lusco-fusco, é uma Cuba sem Fidel nem ao céu nem ao inferno que hoje tenta abrir-se ao capital internacional — o que Padura vê com bons olhos — após 66 anos de um embargo econômico criminoso imposto pelos Estados Unidos — “um ato de guerra econômica em tempos de paz”, como afiançou o chanceler cubano Bruno Rodríguez — e sustentado até hoje, embora a Assembleia Geral das Nações Unidas denuncie a ilegalidade. A paz, portanto, é complexa quando um país não está em condições normais de temperatura e pressão. Vide 2021, quando centenas de milhares de cubanos, em plena pandemia, saíram às ruas — instigados por grupos cubano-estadunidenses de direita, como acredita o governo, ou não, mas que revela um clima de descontentamento no país. Neste ano, massas voltaram às rua de Havana, após frequentes apagões na Ilha, alta do preço do combustível e escassez de alimentos. Por supuesto, o embargo econômico não pode ser naturalizado diante da crise cubana, mas há também a “crise de horizontes — que se observa muito claramente no potencial migratório — e uma crise de confiança nos espaços políticos e institucionais. […] Em resumo, uma lição importante parece ser que enfrentar a crise por meio da expansão de direitos – tanto políticos quanto sociais – é o caminho mais firme para as soluções futuras”, analisou Julio Cesar Guanche, professor da Universidade de Havana, em artigo publicado no Outras Palavras.

E aí entra o repórter, no caso eu, impelido a provocar um assunto que Padura evita com delicadeza ou mostra-se ranzinza, pois é um escritor, não um cientista político, como ele cansa em dizer. Mas poderíamos, então, arriscar uma filosofadas despretensiosas sobre este mundo vasto mundo cujas crises já não podem ser contadas nos dedos de uma mão?

Bem, vamos arriscar — e, assim, tento comer pelas beiradas sua vibe política.

— Parece que o capitalismo está se transmutando com a chamada “digitalização da vida” — é bom destacar: Padura é avesso a redes sociais; é um homem analógico, com orgulho geracional. — Você acredita que isso está levando à construção de uma nova subjetividade?

— Não sei. Só sei que sempre, nos últimos séculos, cada geração tem suas próprias características. E também que a “digitalização da vida” tem gerado uma quantidade de mudanças que nos leva a uma nova era da evolução da humanidade… e não sabemos bem para onde vamos.

— Talvez esta pergunta seja uma extensão da anterior. Uma vez te perguntaram qual era o “futuro da vida socialista” e você respondeu: a liberdade individual. Você acredita que os discursos de “coletividade”, “massas” e “povo” podem, de certa forma, soarem alienantes, sendo um obstáculo à compreensão das singularidades humanas?

— É claro que limitam a expressão da individualidade com a liberdade que deveríamos ter. Em qualquer caso, a defesa dos nossos direitos e liberdades pessoais deve ser realizada num âmbito social onde estão os outros, e esses outros devem ser considerados e respeitados. O homem é um ser social, está integrado num coletivo humano, é parte de uma massa e culturalmente faz parte de um povo. Portanto, esses conceitos devem ser tratados com cuidado. O problema está na sua manipulação… e esse outro mal social, os políticos, cuidam disso com muita paixão.
O homem que abandonou os cachorros

Escritores são seres cheios de obsessões. A História — com H maiúsculo — é a de Padura. O romancista é um contador de mentiras que tem que convencer seu leitor de que o que conta é verdade, já disse ele, como certo clichê. Mas não é, pois Padura é sempre objetivo, pragmático, como já falamos, afeito a sua educação materialista-histórica, traçando desenhos lógicos — e dialéticos. Em suma, ele refere-se às técnicas de seu ofício, pois um escritor deve estar sempre atento aos pequeníssimos elementos que escapam ao olhar de um historiador. Ao retratar o poeta José Heredia em La Novela de Mi Vida, por exemplo, a informação de rodapé de que ele gostava de um guisado de quimbombó [uma variação do quiabo] foi fundamental — além de ser um prato que Padura saboreia com devoção. É a História a partir do agá minúsculo.

A morte de Leon Trótski foi uma destas obsessões.

Por décadas, o revolucionário soviético era um expurgado em Cuba, por assim dizer. O pouco que era sabido sobre ele na Ilha devia-se, de acordo com Padura, a Che Guevara, cujo sangue borbulhante por “um, dois, três, muitos Vietnãs” e de anseio pelo novo homem a ser construído, permitia-lhe dar umas escapulidas do dogmatismo stalinista cubano, e flertar na surdina com grupos trotskistas da doce Havana.

A primeira vez que Leonardo Padura ouviu falar de Trotsky, o “traidor da classe operária”, foi na universidade, quando cursava Letras. Era muito estranho: o soviético sequer era caluniado, mas apagado de qualquer charla política. O escritor ficou encucado — e não tinha quase nada para ler sobre este revolucionário apócrifo. Em 1989, Padura visitou pela primeira vez a Cidade do México e foi conhecer a casa de Coyoacán onde o Leão russo exilado foi assassinado, aos 60 anos. “Era um lugar escuro, sombrio…”, descreveria tempos depois, “parecia mais uma prisão ou um castelo”… Mas aquele ambiente lúgubre, onde Ramón Mercader, um jovem espanhol “kamikaze” que logrou infiltrar-se no círculo íntimo do trotskismo, e golpeou a cabeça alva de uma figura histórica com uma picareta de alpinista, o emocionou.

Não é que ele tornou-se trotskista; longe disso. Mas “existe uma simpatia natural pelos derrotados, pelos que perderam”, explica. Trotsky era uma liderança intelectualizada que, segundo Padura, manteve sempre um pensamento utópico de que a revolução era possível — além de sua história ter um elemento essencial em qualquer “jornada do herói”: um terrível antagonista, no caso, Josef Stalin.

Mas continuando. Após a visita à casa de Trotsky na Cidade do México, Padura ficou com essa história na cabeça até 2005, quando começou a escrever o aclamado O homem que amava os cachorros, um baita thriller com três frentes narrativas: um cubano fodido com a crise cubana dos anos 90 que conhece um homem misterioso que sempre levava seus cachorros para passeios na praia; a epopeia de um Trotsky exilado da União Soviética, melancólico, porém ávido de construir outros rumos para o comunismo internacional em um “castelo mexicano” cercado por seguranças, outros comunistas e seus cachorros; e o apaixonado Ramón Mercader, enredado num complexo jogo de poder e fadado entrar tragicamente para a História: uma vítima do seu tempo. Padura diz que filosofava – antes e depois de escrever o livro: pode um crime ser justificado mesmo para uma grande ideia, se o futuro melhor da humanidade precisa do crime?

De Trotsky, Padura tinha farto material para construir a narrativa, como a autobiografia Minha Vida. Pensou até em utilizá-la como fio condutor, em primeira pessoa, para o eixo narrativo que trataria do revolucionário soviético. Viu que era melhor não. Quanto a Mercader, havia pouco material disponível — alguns depoimentos, entrevistas e a biografia sentimental de seu irmão. Isso deu-lhe certa liberdade para explorar mais este personagem, a partir de outros arquivos, obscuros ou não, mas críveis sobre a vida do jovem espanhol e de “agentes soviéticos infiltrados”, como este personagem.

Um detalhe instigou ainda mais Padura: Ramón Mercader viveu por décadas em Havana, sob identidade secreta, com o pseudônimo de Jaime Lopez, depois de sumir do mapa ao ser liberado de uma prisão mexicana. O escritor, com verve jornalística, logo procurou fontes, quem poderia ter conhecido, interagido, qualquer coisa, com o jovem espanhol. Ninguém disse um “A”.

O fio condutor estava formado: o assassino de Trotsky amava os cachorros — assim como Padura e o próprio Trotsky. Em uma entrevista, o escritor empolgou-se em apontar, após cansativa pesquisa, que em Los sobrivivientes, um filme de 1979 sobre uma família burguesa cubana que isola-se do mundo por acreditar que a revolução era coisa passageira, teve a participação de dois borsóis russos de… Ramón Mercader!

Essa é a deixa para eu apresentar a última pergunta.

— Pensei em fazer ou não esta pergunta. Me pareceu idiota… e talvez seja mesmo. Mas decidi fazê-la. Você disse, em uma entrevista, que é apaixonado pelos cachorros, que já teve alguns inesquecíveis… E que devido a suas constantes viagens, escolheu ter gatos. Isso me fez querer saber mais sobre o escritor que amava os cachorros e, agora, ama os gatos…

— Ainda sou amante dos cachorros. E lamento muito não poder ter alguns devido aos meus compromissos de trabalho fora de Cuba. Os gatos são muito na deles e não sinto afinidade por eles. Eu os alimento e aí termina minha relação com eles… Com os cães, porém, é possível conversar e eles me entendem melhor do que muitas pessoas.


Rôney Rodrigues
Editor de Outras Palavras. Formado em jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), colaborou com veículos como Superinteressante, Caros Amigos, Brasil de Fato, Rede Brasil Atual e Revista Móbile. Assessorou movimentos sociais e entidades envolvidas na pauta urbana. Especializado na cobertura de temas relativos ao direito à cidade e em conflitos urbanos, mantém o blog outraspalavras.net/doispontos

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