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Internet: o Desafio Morozov

Não basta controlar as corporações que a sequestraram, diz pensador em SP. É preciso reconstruir a rede, resgatando uma arquitetura de espaço solidário, desmercantilizado e aberto à cooperação. Sul Global pode liderar processo



De OUTRASPALAVRAS, 31 de Agosto 2023
Por Daniel Santini, Joyce Souza e Leonardo Foletto



O bielorusso Evgeny Morozov, um dos principais pensadores de tecnologia da atualidade, visitou o Brasil nos últimos dias de agosto. Durante sua passagem por São Paulo, participou de uma reunião organizada pela Coalizão Direitos na Rede para um grupo de pesquisadores e ativistas1 e realizou uma apresentação pública a convite do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) no auditório da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP), entre outras atividades. Em ambos os espaços, foi enfático ao defender que, para melhor compreender o contexto contemporâneo das tecnologias, é preciso considerar relações políticas e econômicas a partir do capitalismo neoliberal. Também destacou a necessidade de imaginar e desenvolver infraestruturas e políticas públicas estatais, dada a necessidade de grandes investimentos seja para a criação de infraestruturas voltadas à conexão seja para o desenvolvimento de Inteligência Artificial, por exemplo.

Ao abordar estes temas, Morozov provocou: precisamos pensar para além da regulação das tecnologias digitais. Não que este debate não seja importante; é, mas sua chamada foi para construir também alternativas para um mundo tecnológico, onde seja possível avançar com imaginários que criam uma mentalidade da relação do homem com a tecnologia para além das mediações neoliberais. “A regulamentação é importante, mas não podemos apenas discutir o que fazer com relação ao WhatsApp ou ao Facebook. Precisamos pensar o que fazer a respeito dessas enormes infraestruturas digitais que empresas privadas estão vendendo de volta às instituições públicas e aos cidadãos”, disse em entrevista à Folha de S.Paulo.

A provocação de Morozov sobre a necessidade de criar alternativas e pressionar as políticas públicas para não abraçar o mundo tecnológico tal como está posto por grandes interesses do capital talvez seja o ponto mais forte de seu discurso atual. Enfatizar a necessidade de construir soberanias tecnológicas e diminuir assimetrias de dependência é consequência desse discurso. Morozov é insistente nesse ponto. Seus dois livros lançados no Brasil, Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política, publicado pela editora Ubu em 2018, e A cidade inteligente: Tecnologias urbanas e democracia, coedição de Ubu e Fundação Rosa Luxemburgo em 2020, são ambos críticas ácidas, irônicas e bem fundamentadas.

No primeiro, o bielorusso trata do crescente poder das grandes empresas de tecnologia, que desequilibram o jogo democrático em todo o mundo. No segundo, escrito em parceria com a italiana Francesca Bria, disseca e desmonta a ideia de smart cities, procurando chamar a atenção para a fragilidade de conceitos que se espalham rapidamente baseados no “solucionismo tecnológico”, conceito que ele vem trabalhando há dez anos, segundo o qual a tecnologia é o pacote que resolve todos os problemas do mundo, sem necessariamente informar ao mundo quais são os custos e interesses envolvidos nisso.

Já em 2018, no livro Big Tech, alertava: “o Vale do Silício destruiu a nossa capacidade de imaginar outros modelos de gestão e de organização da infraestrutura da comunicação. Podemos esquecer os modelos que não se baseiam em publicidade e que não contribuem para a centralização de dados em servidores particulares instalados nos Estados Unidos. Quem sugerir a necessidade de considerar outras opções – talvez até mesmo modelos já publicamente disponíveis – corre o risco de ser acusado de querer “quebrar a internet”.

Olhar o passado para imaginar o futuro

Para defender a necessidade de imaginar alternativas, Morozov insiste na necessidade de considerar a dimensão econômica, social e histórica das novas tecnologias. Para falar do futuro, defendeu o uso de referências do passado, ancorado no seu recém-lançado podcast The Santiago Boys, projeto que trata do resultado de uma investigação de dois anos sobre o Projeto Cybersyn do governo de Salvador Allende (1970-1973), no Chile, uma tentativa de criar uma rede baseada em telexes e computadores na administração federal, contrapondo a empresa International Telephone and Telegraph Corporation (ITT) e seus interesses.

O podcast tem nove episódios de uma hora cada, e um site com a transcrição de várias entrevistas realizadas. É um trabalho que joga luz a uma iniciativa que, mesmo que não tenha “dado certo”, mostra as possibilidades e dificuldades na construção de outros imaginários de arquiteturas tecnológicas que não as baseadas no capitalismo neoliberal. Morozov está negociando a possibilidade de transformar The Santiago Boys em filme, já que acredita que é necessário propor outras narrativas e mitos para se opor aqueles já bem conhecidos ligados ao empreendedorismo startupeiro do Vale do Silício. Daí também a escolha do produto final de sua investigação, mais palatável a audiências maiores do que um livro ou artigos em publicações jornalísticas.

Em sua pesquisa sobre o Cybersin, o escritor voltou seu olhar para os anos 1960 e 1970 da América Latina e reconheceu a importância da Teoria da Dependência. Gestada na América Latina e popular nesse período, a partir de autores como André Gunder Frank, Rui Mauro Marini e Fernando Henrique Cardoso (todos citados por Morozov em suas falas brasileiras), a teoria entende que a caracterização de países como “atrasados” decorre da relação do capitalismo mundial de dependência entre países “centrais” e países “periféricos – algo que, agora, se dá também a partir das empresas do Vale do Silício, que assumiram um papel-chave em um novo jogo de relações de poder econômico, político e internacional, onde os governos se encontram cada vez mais reféns de suas soluções.

Morozov ressaltou que as plataformas digitais têm feito uma apropriação do futuro, bloqueando possibilidades e ampliando dependências geopolíticas. Fazem isso ao impor uma lógica de uso e, consequentemente, de aquisição dessas tecnologias aos países dependentes do Sul Global como o Brasil, numa também reprodução (ou ampliação) da lógica colonial que pode ser chamada de Colonialismo Digital (ou Colonialismo de Dados).

O interesse do bielorusso em compreender este contexto na América Latina se dá, segundo suas falas, por acreditar que a resistência a esse cenário poderá vir dos países periféricos, seja por seus contextos históricos de desenvolvimento tecnológico, seja pelo quanto serão afetados. Assim, conceitos como o de soberania tecnológica devem ser entendidos, na visão apresentada por Morozov, como parte de políticas tecnológicas e industriais nacionais. Necessariamente.



Morozov em reunião organizada pela Coalizão Direitos na Rede, Data Privacy Brasil e Rede LatinoAmericana de Estudos sobre Vigilância (Lavits), com mediação de Ana Mielke, do Intervozes, e Leonardo Foletto, do Creative Commons Brasil. Foto: Daniel Santini

Falsa dicotomia: soluções de mercado x planejamento centralizado

Com cuidado, escolhendo as palavras em um esforço notável para falar português, Morozov fez questão de, ao tratar do papel do Estado, desmontar a falsa binariedade entre soluções de mercado e planejamento centralizado.

Em sua fala pública, que pode ser assistida na íntegra no canal do Comitê Gestor de Internet, argumentou que precisamos de outros caminhos que não passem pela ausência de regras e dependência de grandes corporações tecnológicas, de um lado, ou pelo controle total de governos de outro. São alternativas que, não estando prontas, precisam ser imaginadas e construídas – tarefa em que podem contribuir a sociedade civil, pesquisadores e pesquisadoras, jornalistas e ativistas.

Morozov parte da premissa de que inovação tecnológica não é neutra, mas sim um processo político. Daí a importância de se repolitizar o discurso sobre inovação a partir também de um criticismo tecnológico. No encontro que antecedeu a apresentação pública, destacou que a “esquerda tradicional não tem uma visão construtiva sobre tecnologia, mas sim defensiva”, e reafirmou a ideia de que os movimentos sociais, como o MST e o MTST, podem ajudar a disputar a inovação (e a discussão sobre soberania) também a partir de um ponto de vista popular, já que seus arranjos políticos e organizacionais hoje são inovadores e de grande alcance territorial.

Na reunião organizada pela Coalizão Direitos na Rede, Morozov ainda foi categórico ao chamar a atenção de pesquisadoras e pesquisadores brasileiros para a importância de pesquisas e estudos críticos para ampliar o debate político frente ao desenvolvimento, à evolução e à aplicação de novas tecnologias digitais, trazendo à sociedade civil os insumos necessários para pressionar as políticas públicas existente sobre o tema rumo ao desenvolvimento de uma soberania tecnológica brasileira.

Referências históricas e um novo imaginário, essas são as premissas para avançar nesse cenário. Essa é a combinação recomendada por Morozov em sua breve passagem por São Paulo.

1 A atividade foi realizada a partir da iniciativa de organizações integrantes da da Coalizão Direitos na Rede, entre as quais Artigo 19, Creative Commons Brasil, Data Privacy Brasil, DiraCom, Instituto Vero, Instituto Aaron Swartz, Intervozes e LAVITS.


DANIEL SANTINI, JOYCE SOUZA E LEONARDO FOLETTO
Daniel Santini é coordenador da Fundação Rosa Luxemburgo e autor do livro Passe Livre: as possibilidades da Tarifa Zero contra a distopia da uberização
Joyce Souza é pesquisadora do Laboratório de Tecnologias Livres da Universidade Federal do ABC e integrante do Movimento Global Non Aligned Technologies (NATM) e coorganizadora do livro Colonialismo de Dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal.

Leonardo Foletto é pesquisador da Escola de Comunicação e Mídia (ECMI) da FGV, integrante do capítulo brasileiro do Creative Commons e autor do livro A Cultura é Livre: uma história da resistência antipropriedade.

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